A Bolívia perdeu seu acesso ao mar logo no início da Guerra do Pacífico (1879-1884), quando as fronteiras foram redesenhadas e o acesso ao oceano caiu nas mãos do Chile. Nos 142 anos seguintes, a Bolívia fez várias tentativas para recuperar sua soberania marítima e acessar o Oceano Pacífico via Chile ou Peru, mas sem muita sorte.
Assim, não é à toa que a Bolívia tenha começado a olhar para o Oceano Atlântico com outros olhos desde a inauguração simbólica das operações da hidrovia Ichilo-Mamoré, realizada pelo presidente boliviano Luis Arce em 5 de julho. O projeto, segundo o governo, deve melhorar a passagem de grandes navios de carga nos rios Ichilo e Mamoré, sendo que este último flui para o Brasil, onde se conecta com outras hidrovias até chegar ao oceano.
A hidrovia possui 1400 quilômetros de extensão e começa em uma seção do rio Ichilo, localizado em Cochabamba, no centro da Bolívia. Em seguida, continua ao longo do rio Mamoré, que desemboca na região amazônica de Beni, no norte do país, na fronteira com o Brasil.
A hidrovia Ichilo-Mamoré não é um projeto inteiramente novo. As primeiras obras se iniciaram já em 1970, apoiadas por uma cooperação com a agência de desenvolvimento do governo belga. A hidrovia esteve em funcionamento até o início dos anos 2000 e incluía o Rio Beni, que corre para o norte para encontrar o Rio Mamoré. As rotas eram então utilizadas para o transporte doméstico de combustível e alimentos com destino a áreas remotas. Mas tudo mudou com a construção de uma estrada ligando os departamentos de Santa Cruz e Beni em 2001, que tornou a existência da hidrovia obsoleta para as populações vizinhas e empresas de navegação.
Para cientistas sociais e ambientais, há a preocupação de que os atuais projetos de renovação da hidrovia Ichilo-Mamoré não sejam a melhor escolha para gerar desenvolvimento sustentável e equitativo na região. Dentre os motivos, eles citam as condições hidrológicas inadequadas e o aumento dos riscos de inundações para as comunidades ribeirinhas, além da ausência de um estudo de impactos ambientais atualizado.
Uma oportunidade para as hidrovias da Bolívia
A Federação das Entidades Empresariais de Cochabamba (FEPC) propôs a renovação da hidrovia Ichilo-Mamoré como uma rota mais vantajosa para exportar produtos para a Europa. Atualmente, a Bolívia utiliza o porto chileno de Arica, que então encaminha os produtos para o Canal do Panamá até chegar ao Oceano Atlântico.
Hoje em dia, as mercadorias que saem de Cochabamba para Lisboa, por exemplo, percorrem 12.105 quilômetros em 40 dias pelo porto de Arica. As mercadorias chegariam ao mesmo destino em apenas 28 dias caso fossem escoadas pela hidrovia Ichilo-Mamoré e tributários brasileiros. A duração total da viagem seria de 9.971 quilômetros — cerca de 2.300 quilômetros a menos.
US$ 1 bilhão
seria o valor da economia nos custos de exportação caso a hidrovia Ichilo-Mamoré já estivesse em operação.
Se estivesse totalmente operacional, a hidrovia geraria uma economia de até 25% nos custos operacionais de exportação, ou US$ 1 bilhão de dólares por ano, de acordo com informações fornecidas pela Federação de Empresários Privados do Beni (FEPB). Um estudo de 2005 do Serviço de Melhoria da Navegação da Amazônia (Semena) estimou que a revitalização da hidrovia Ichilo-Mamoré exigiria mais de 100 milhões de dólares.
A Bolívia começou a levantar os fundos necessários somente agora. Na etapa atual, o Ministério de Obras Públicas (MOPSV) orçou um pouco mais de US$800.000 para a limpeza da hidrovia e a construção de áreas complementares — como armazéns e áreas para a proteção e supervisão de obras portuárias. A segunda etapa deve focar em melhorias da infraestrutura, incluindo sinalização, conexões rodoviárias e plataformas portuárias em Puerto Villarroel, em Cochabamba, onde começa a via navegável. Uma terceira etapa deve focar no funcionamento a longo prazo da hidrovia.
Édgar Montaño, ministro de Obras Públicas, anunciou em julho que a segunda etapa do projeto deve ser financiada por instituições internacionais. “Há interesse na hidrovia Ichilo-Mamoré. O financiamento nos foi proposto pela CAF [Banco de Desenvolvimento da América Latina] e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. E não são apenas os países europeus entre os interessados na construção, mas também a China”, disse Montaño, em declarações veiculadas pela agência de notícias da Bolívia Agencia ABI.
O interesse da China em reativar a hidrovia faz coro aos desejos de empresas bolivianas de exportar mais produtos para o maior mercado consumidor do mundo sob condições mais vantajosas. Em declarações divulgadas pelo jornal nacional Los Tiempos, o presidente da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Cochabamba (ICAM), disse que o embarque de mercadorias para a China seria mais rápido utilizando a hidrovia Ichilo-Mamoré, gerando uma economia de tempo de 25%, o que na prática significaria uma economia de 13 dias, de uma média de 45 a 32 dias.
Renovações em andamento na hidrovia Ichilo-Mamoré
Na inauguração da hidrovia Ichilo-Mamoré, um barco carregando 60 toneladas de cimento viajou para a cidade de Guayaramerín, no norte da fronteira com o Brasil, em uma primeira viagem simbólica.
Uma semana depois, Montaño publicou um artigo no jornal La Razón, comemorando o lançamento. “Podemos exportar nossos produtos para os mercados europeus e asiáticos”, disse o ministro, que espera ver embarques rápidos de bananas, abacaxis, frutas cítricas, madeira, carne e soja.
Apesar do incentivo do governo, a hidrovia ainda não reúne as condições necessárias para exportar produtos, segundo Javier Bellott, um executivo boliviano do setor da mineração e um dos principais defensores da reativação da Ichilo-Mamoré quando presidia a FEPC.
Uma hidrovia tem um impacto menor do que uma estrada, mas mais do que uma ferrovia
Bellott assinala que sua empresa não consegue enviar produtos pela rota já que os portos não possuem a logística de estiva necessária para a carga e descarga. “O governo tem que investir ou oferecer as obras por meio de uma concessão, e tem que fazê-lo agora”, comentou ao Diálogo Chino.
Vantagens comerciais da Ichilo-Mamoré
A hidrovia Ichilo-Mamoré serve como uma conexão alternativa para a Bolívia com o Oceano Atlântico, o que beneficia mas mercadorias de Cochabamba, Beni e Pando, cujos principais produtos exportáveis são alimentos e produtos manufaturados, segundo o Instituto Boliviano de Comércio Exterior (IBCE). A hidrovia também pode facilitar a importação de insumos para a estrutura produtiva da região.
A saída pelo Atlântico ligaria a Bolívia de forma mais eficiente aos países europeus, incluindo o Reino Unido, Espanha, França e Alemanha, que atualmente têm os maiores fluxos comerciais com os fornecedores bolivianos. “Ao mesmo tempo, ela se conecta com alguns estados dos Estados Unidos, como Nova York e Flórida”, disse Jimena León, chefe de estatísticas do IBCE, ao Diálogo Chino.
A Bolívia tem um déficit comercial com a Ásia, e seus intercâmbios com a China explicam em grande parte essa conjuntura. “Especificamente pelo Atlântico, a Bolívia exportou um valor de US$ 55 milhões para o mercado asiático entre 2016 e agosto de 2021, enquanto as importações no mesmo período atingiram US$ 666 milhões”, disse León.
A conexão atual da Bolívia com o Atlântico se dá pela hidrovia Paraguai-Paraná, atualmente inoperante devido à forte seca. Em abril de 2019, a hidrovia Paraguai-Paraná estava pronta para despachar 84 contêineres com cimento e madeira bolivianos destinados aos mercados paraguaio e chinês, mas a carga acabou não conseguindo seguir viagem devido à seca. Com fluxos fluviais supostamente mais confiáveis, a hidrovia Ichilo-Mamoré poderia oferecer uma rota de trânsito de mercadorias mais resiliente ao clima para o mercado chinês, mas especialistas ainda estão reticentes.
Previsões socioambientais
A primeira hidrovia Ichilo-Mamoré foi um projeto em que a agência de desenvolvimento do governo belga investiu recursos econômicos e técnicos significativos. O biólogo aquático Paul Andre Van Damme, que trabalha na área há décadas, lembra-se claramente disso.
Van Damme acredita que a nova hidrovia será muito maior em termos de capacidade de navegação do que a versão construída nos anos 1970. É essencial realizar avaliações do estado da hidrovia e de suas áreas de influência e, caso o projeto seja ampliado, encomendar novos estudos de impacto ambiental que sejam capazes de avaliar sua viabilidade técnica.
Na ausência de um estudo de impacto socioambiental, organizações não governamentais ainda não fizeram declarações sobre o empreendimento. Povos indígenas na área de influência da hidrovia ainda aguardam mais informações sobre o projeto a fim de tomar uma posição mais informada.
Van Damme adverte que há um trecho do rio Mamoré que não é o mais apropriado para uma hidrovia. “É um rio muito dinâmico e poderoso, com um curso determinado por uma dinâmica hidrológica condicionada pela Cordilheira dos Andes”, explica. “O nível de sedimentação do rio determina seu curso e o altera continuamente, gerando novas lagoas e meandros”, comentou Van Damme ao Diálogo Chino.
A socióloga Sarela Paz, que trabalha há três décadas na área da hidrovia, concorda com a avaliação do biólogo. Ela acredita que, se não for muito invasiva, a hidrovia pode ser benéfica para a população ribeirinha, que é composta de indígenas amazônicos e colonos internos. Entretanto, caso o rio seja dragado excessivamente, o projeto pode gerar impactos significativos.
Paz também está ciente de que a hidrovia é preferível a uma estrada, pelo menos em termos socioambientais. Ela se refere a uma estrada entre Cochabamba e Beni que se propunha a atravessar o Parque Nacional de Isiboro Sécure e Território Indígena, mas que no final não foi construída.
Van Damme concorda que uma hidrovia tem um impacto menor do que uma estrada — mas mais do que uma ferrovia. Qualquer que seja o projeto, é preciso que haja um estudo prévio de impacto que, além de examinar sua viabilidade técnica e financeira, incorpore três importantes critérios de avaliação, analisa o biólogo.
O primeiro desses critérios deveria ser os riscos hidrológicos, sedimentológicos e geomorfológicos. Isto contribuiria para uma melhor compreensão do comportamento do rio e permitiria intervenções planejadas. O segundo deve levar em conta os impactos sobre a fauna, flora e o funcionamento da ecologia local. E por último, é necessário produzir uma análise socioeconômica para investigar os efeitos do projeto sobre a dinâmica social e as atividades produtivas, como pesca, turismo e recreação.
Uma análise social seria fundamental para o projeto da hidrovia Ichilo-Mamoré, já que seria capaz de prevenir e mitigar problemas potencialmente críticos para o ecossistema, para as comunidades indígenas vizinhas e até mesmo para as populações localizadas em áreas mais urbanas que poderiam ser expostas a grandes inundações — um risco já latente no departamento de Beni devido à planície de seu território.
“Um estudo detalhado de impacto socioambiental é um pré-requisito para avançar e tem que ser feito antes do início do projeto, não quando já está em andamento ou executado”, insiste Van Damme.