Para viajar da capital uruguaia, Montevidéu, à cidade litorânea de Punta del Este, motoristas precisam percorrer uma estrada de 132 quilômetros. O trajeto da Avenida General Liber Seregni — ou Interbalneária, como chamam os uruguaios —, que levaria normalmente 90 minutos, tem ultrapassado as duas horas devido ao alto fluxo de veículos.
Para aliviar os congestionamentos, o governo uruguaio propôs, no ano passado, a construção de uma autoestrada de alta velocidade, a primeira desse tipo no país. A via expressa de até 30 quilômetros seria conectaria a Interbalnearia à Rota 8 — que liga a capital e sua área metropolitana, onde vivem 60% dos uruguaios, às praias mais populares do país.
A ideia da nova rodovia foi bem recebida por um consórcio privado atualmente responsável pela gestão da Interbalneária. O grupo até se disponibilizou a investir cerca de US$ 80 milhões no projeto. A principal justificativa é que o deslocamento de Montevidéu até o aeroporto, a leste da via proposta, seria reduzido em 15 minutos.
Porém, nem todos concordaram com os planos da autoestrada: algumas comunidades potencialmente afetadas pelo projeto formaram uma forte oposição às obras — sobretudo os produtores agroecológicos próximos à Lagoa do Cisne, no departamento de Canelones, zona que seria atravessada pela nova rodovia.
A viabilidade e o custo do projeto também têm sido bastante questionados, tornando a autoestrada alvo de debates políticos, principalmente em Canelones, em meio às eleições presidenciais deste ano. O Ministério de Transportes e Obras Públicas havia começado a avaliar rotas alternativas que não afetassem os produtores familiares, mas a cada mudança a viabilidade do projeto era posta em risco.
Depois de muitas discussões, o governo anunciou, em meados de abril, que o projeto seria arquivado. Além disso, o ministério informou que, após conversas com as comunidades, buscaria uma solução ao fluxo de carros por meio de melhorias nas estradas atuais.
Projeto arquivado antes de sair do papel
Nenhuma outra rota foi definida antes do arquivamento do projeto. Em entrevista ao Dialogue Earth, Carlos González, assessor do Ministério de Transportes e Obras Públicas, diz que foram consideradas “uma dúzia” de traçados alternativos, cada qual com suas vantagens e desvantagens, buscando minimizar o impacto sobre as comunidades.
A opção principal, sugerida por sua proximidade com as áreas mais populosas do país, deveria atravessar ou passar perto de centenas de áreas agrícolas, rebanhos, vinhedos e haras. Mas essa construção também ameaçaria os ecossistemas de duas bacias hidrográficas próximas que já sofrem com problemas de contaminação: o arroio (ou córrego) Pando e, novamente, a Lagoa do Cisne.
A Lagoa do Cisne é a única lagoa natural no departamento de Canelones. Ela fornece água para animais e 150 mil famílias na chamada Costa de Oro. Durante a crise hídrica do ano passado, Montevidéu chegou a retirar água da lagoa, onde há uma usina de extração administrada pela empresa de serviços públicos OSE.
Em 2014, autoridades detectaram altos níveis de fósforo nessas águas, resultado do uso excessivo de agrotóxicos em fazendas de soja próximas — que depois encerraram suas atividades na área. Representantes do governo e das comunidades formaram uma comissão para resolver o problema e, desde 2016, uma grande área para além dos limites da lagoa está sob proteção judicial. Além disso, o uso de fertilizantes é continuamente monitorado para garantir que os níveis de fósforo permaneçam dentro da normalidade.
As restrições forçaram a troca da monocultura por métodos e cultivos agroecológicos. Muitas empresas abandonaram a área, permitindo que as famílias da zona convertessem suas terras em plantações mais sustentáveis. Agora, qualquer mudança nesses terrenos — desde a criação de um lago até a troca de insumos nas culturas — requer autorização judicial.
Para as comunidades próximas à lagoa, esse foi um dos principais pontos de divergência em relação ao projeto da autoestrada: os moradores consideraram irônico que as autoridades quisessem construir uma rodovia nessa área protegida sem consultá-los previamente.
Gabriel de Souza é um professor de biologia que vive na região com sua família há quase uma década. Em entrevista ao Dialogue Earth, ele conta que a vizinhança se adaptou às regras de produção mais sustentáveis.
“Os moradores investiram dinheiro, construíram poços, estufas, bebedouros para os animais que não podiam beber água dos córregos [poluídos]”, diz Souza. “Foi muito tempo e dinheiro investido nisso, além de uma mudança de pensamento”.
O professor explica ainda que, após todo esse processo, a notícia da nova rodovia não teria como ser bem recebida. “Agora eles dizem ‘foi muito bom o que vocês fizeram, mas vamos passar uma rodovia por cima disso aqui’”.
Souza comprou sua fazenda em Sosa Díaz, ao norte da lagoa, com a intenção de construir uma agrofloresta, sistema que busca produzir alimentos com métodos o mais próximos possíveis do funcionamento de um ecossistema natural. Sua família começou com a reciclagem de recipientes em sua casa e depois avançou para a bioconstrução e o tratamento de seus resíduos.
Atualmente, a família de Souza e o resto da comunidade vivem do que cultivam. Assim, demonstram a viabilidade da produção sustentável e orgânica no Uruguai — uma alternativa ao agronegócio que polui as águas em muitas partes do país.
Daniel Panario, professor de ciências ambientais da Universidade da República em Montevidéu, explica que a construção da via expressa teria destruído o modo de vida dessa comunidade, que ele descreve como “o único experimento no Uruguai” dedicado à “produção comunitária responsável e orgânica”.
Ambientalistas também levantaram preocupações sobre os possíveis impactos do projeto à vida selvagem, que fragmentaria habitats e aumentaria a poluição luminosa na região.
“Uma estrada é uma barreira para tudo… para a água, para as pessoas e para a fauna”, destaca Panario. De acordo com ele, as lontras, capivaras, raposas e até mesmo o veado-catingueiro estão entre as espécies de animais potencialmente afetadas por uma nova rodovia. Mas é a vida selvagem menos visível a olho nu — especialmente anfíbios, insetos e polinizadores — que o deixou mais preocupado.
Mais de 85% do departamento de Canelones já é bastante atingido pela poluição luminosa artificial noturna, gerada em parte pelas estradas atuais, segundo um relatório recente do governo local. Essa poluição pode fazer com que os insetos voem diretamente em direção à luz artificial, ignorando suas rotas naturais.
Pablo Bianchi, morador antigo da cidade de Pando, nos arredores de Montevidéu, é dono de um vinhedo e uma vinícola atrás da qual a nova rodovia ameaçava passar. “Fala-se em economizar 15 minutos na viagem para Punta del Este, mas isso teria um custo ambiental muito alto para o pequeno benefício criado”, critica o produtor.
Durante as fases preliminares do projeto, os moradores só tiveram 15 minutos em uma reunião para expressar suas preocupações com os deputados do departamento de Canelones.
Foi também aberto um canal na Câmara Municipal de Canelones para que os vereadores pudessem representar os moradores no diálogo com o Ministério dos Transportes e Obras Públicas. Com isso, a população solicitou acesso a relatórios a respeito do projeto, incluindo informações sobre o local onde a rodovia seria construída.
Os Guardiões das Bacias, grupo de moradores de várias cidades no leste de Canalones, escreveram uma carta até para o presidente uruguaio Luis Lacalle Pou no início deste ano. No texto, o grupo alerta que a autoestrada “destruiria a paz” da população e “o frágil equilíbrio ambiental de toda uma região”. Eles ainda lideraram campanhas e protestos na Interbalneária, chamando a atenção de motoristas e da imprensa para a questão.
“Ficamos muito felizes com as declarações do ministro José Luis Falero [do Ministério de Transportes e Obras Públicas] ao anunciar que a construção da rodovia não iria adiante, pelo menos não como planejado, atravessando as bacias do arroio Pando e da Lagoa do Cisne”, diz Gabriel de Souza.
“Parece que nossas reivindicações foram ouvidas”, comemora Souza. “Sempre tivemos a convicção de que essas áreas protegidas não poderiam ser degradadas dessa forma”.
Uma decisão política
Atualmente, o governador interino do departamento de Canelones é Marcelo Metediera, que ocupa o cargo enquanto seu antecessor, Yamandú Orsi, tenta chegar à presidência com o apoio da coalizão Frente Ampla. As eleições estão marcadas para 27 de outubro.
Metediera foi diretor de Transportes de Canelones por quatro anos. Em conversa com o Dialogue Earth, ele disse ter tido dificuldades em separar sua posição pessoal, contrária ao projeto, e profissional, que deveria incentivá-lo.
Metediera reconhece que alguns trechos da Interbalneária já sofreram intervenções, como a instalação de semáforos e cruzamentos, que a transformaram quase em uma avenida urbana e dificultam o trânsito. Por outro lado, ele disse ser “necessário aumentar um pouco mais a velocidade” na rodovia para dar mais conforto aos motoristas.
Enquanto países vizinhos têm limites de velocidade de até 130 km/h em alguns trechos, o limite máximo do Uruguai é de 90 km/h. Pouquíssimos trechos de rodovias uruguaias permitem o limite máximo nacional de 110 km/h.
Os engarrafamentos no Uruguai, no entanto, são um problema cada vez mais difícil de resolver. De acordo com dados de 2022, o número de veículos no país cresceu mais de 60% nos últimos 11 anos. Na época, havia 2,84 milhões de veículos para 3,5 milhões de uruguaios. As melhorias nas estradas, por sua vez, não acompanham esse aumento e se atêm a duas regras gerais: manter cada estrada com duas pistas e respeitar os limites de velocidade.
Mas Souza acredita que a proposta das comunidades com sugestões para descongestionar o tráfego a partir das estradas que já existem estejam sendo consideradas e possam trazer mudanças positivas.
Os Guardiões das Bacias, por sua vez, disseram ter ficado satisfeitos com o resultado, mas acrescentam que permanecerão vigilantes contra qualquer projeto futuro que possa degradar o ecossistema que eles protegem tão arduamente.