Embora as relações diplomáticas entre o governo de Javier Milei e a China passem por fortes tensões, as províncias argentinas têm contornado a política externa da Casa Rosada e reforçado os vínculos com Beijing. Graças a esses esforços subnacionais, o país tem conseguido criar oportunidades de investimento para setores como energia, infraestrutura, comércio e exploração de recursos naturais.
O sucesso dessas iniciativas varia muito. Ainda há um desconhecimento enorme em relação à China entre os governos provinciais, e as viagens de negócios para a China demandam uma preparação melhor. Enquanto isso, as restrições econômicas em todo o país seguem alimentando um cenário de incertezas.
Relacionamento ambíguo
Na campanha eleitoral de 2022-2023, o presidente argentino Javier Milei disse que não faria “negócios com comunistas” — entre eles, a China —, sinalizando que haveria um esfriamento dos laços diplomáticos. Assim que assumiu a presidência em dezembro de 2023, Milei cancelou de última hora a entrada da Argentina no bloco dos Brics (formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). No entanto, conforme foi avançando em seu mandato, o pragmatismo na política externa se impôs, reestruturando a relação China-Argentina.
Em seu primeiro ano no cargo, Milei se beneficiou de várias ações da China. Em junho de 2024, apesar da hesitação inicial em relação à postura do novo governo argentino, a China renovou sua linha de swap cambial, medida que havia sido negociada com a gestão anterior. Isso permitiu que a Argentina adiasse o pagamento de US$ 5 bilhões em dívidas. Mais tarde, Milei declarou que China é “um parceiro comercial muito interessante, porque eles não exigem nada”. Na cúpula do G20 no Brasil, em novembro, Milei se encontrou pela primeira vez com o presidente chinês Xi Jinping, reforçando esse vínculo.
No entanto, a proximidade de Milei com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, lançam dúvidas sobre a extensão das relações com a China no curto prazo: a nova usina nuclear Atucha III, por exemplo, usa tecnologia chinesa e, portanto, pode ser vista como um problema aos interesses dos EUA. A base aeroespacial chinesa na província de Neuquén, no norte da Patagônia, e a possibilidade de que a Huawei participasse da expansão da rede 5G da Argentina geraram tensões semelhantes.
Pragmatismo provincial
Para Stella Maris Juste, especialista em relações internacionais e pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da Argentina (Conicet), “as relações entre as províncias argentinas e a China conseguiram resistir às mudanças na política nacional e até mesmo nas próprias províncias”. De acordo com ela, isso ocorreu não apenas no governo Milei, “mas também na gestão anterior de Mauricio Macri”.
Juste explicou ao Dialogue Earth que isso se deve a uma questão de interesses comuns: “As províncias precisam atrair investimentos, criar empregos e melhorar a infraestrutura, enquanto a China busca melhorar o acesso aos principais recursos naturais, como lítio e outros minerais, e também expandir a energia renovável e as indústrias portuárias”.
Nas províncias, a China encontrou interlocutores confiáveis para manter o relacionamento nesses tempos turbulentosDiego Cagliolo, da organização Argentina Global
Em 2024, a economia das províncias sofreu grandes abalos com as novas medidas de desfinanciamento da administração federal. As transferências para os governos provinciais e municipais caíram 19% em relação ao ano anterior, segundo a comissão de orçamento do Congresso.
“Nas províncias, a China encontrou interlocutores confiáveis para manter o relacionamento nesses tempos turbulentos”, explicou Diego Cagliolo, diretor de projeção estratégica para a Ásia na organização Argentina Global. “É por isso que o embaixador chinês Wang Wei visita as províncias; e os governadores, a embaixada”.
Em 2024, houve uma visível aproximação das autoridades provinciais com a China, geralmente por meio da embaixada chinesa na Argentina.
Um desses casos foi o do vice-governador da província de Catamarca, que visitou as instalações da mineradora Zijin, incluindo seu centro de pesquisa de energia limpa e baterias.
Em setembro, o governador de Córdoba liderou o Encontro de Conexão Institucional e Comercial entre sua província e empresas chinesas. O embaixador Wang anunciou o que uma empresa automobilística chinesa estaria interessada em abrir uma fábrica em Córdoba. Nesse encontro, estiveram presentes representantes do Banco Industrial e Comercial da China (ICBC) e do China Energy International Group.
Em outubro, o governador de Santa Cruz visitou a China e assinou um acordo com a empresa de pesca Hong Dong para desenvolver a pesca em sua província. Posteriormente, uma delegação da Câmara de Comércio de Fujian visitou Santa Cruz para discutir um acordo de exportação de carvão com a mineradora estatal chinesa YCRT.
Wang também visitou a província de La Pampa para se reunir com o governador no fim de maio passado, acompanhado por representantes de empresas como a Shanghai Electric Power, a fabricante de turbinas eólicas Goldwind e a ICBC.
Já o governador da província de Buenos Aires encontrou Wang em fevereiro de 2024, após acertar, em novembro de 2023, um investimento de US$ 1,25 bilhão do China Potassium Chemical Group. A empresa está preparada para construir duas fábricas de fertilizantes na cidade portuária de Bahía Blanca. Além disso, investimentos em energia renovável, desenvolvimento agrícola e portos de Buenos Aires foram discutidos com autoridades da província de Sichuan — com possibilidade de investimentos da empresa de maquinário agrícola Ruiyuan Holdings.
Em novembro, Wang esteve na província de Neuquén. No encontro com o governo provincial, também estiveram presentes representantes de grandes empresas chinesas de construção, telecomunicações, ferrovias e estradas, engenharia e fabricação de equipamentos e petróleo e gás.
Relações em vários níveis
“A China tem uma longa tradição de estabelecer relações em vários níveis com os países, incluindo acordos subnacionais, mas também por meio de vínculos com universidades e think-tanks”, explicou Oriana Cherini, pesquisadora de relações internacionais do Conicet. “Nesse contexto, a China encontrou nas províncias argentinas aliados fundamentais e estáveis”.
Conforme dados de 2023 compilados pela Bolsa de Valores de Rosário, na Argentina, a China foi o principal parceiro comercial internacional das províncias de Jujuy, Chaco, Santiago del Estero, Catamarca, La Pampa e Entre Ríos. Foi também o segundo maior parceiro comercial das províncias de Santa Fé e Buenos Aires.
Caso em destaque: Jujuy
A província de Jujuy, no noroeste do país, é frequentemente citada como um caso exemplar para o relacionamento subnacional da Argentina com a China. É lá que se encontra um dos maiores projetos de energia renovável da China na Argentina, o parque solar Cauchari, de 315 megawatts. O projeto foi financiado majoritariamente pelo Banco de Exportação e Importação da China e construído pelas empresas Power China, Shanghai Electric Construction e Talesun, do leste da China.
Pablo Palomares, secretário de relações internacionais de Jujuy, considera Cauchari um passo importante para a manutenção dos laços da província com a China. “Jujuy soube se aproximar e responder com comprometimento e seriedade”, avaliou. “Foi elaborado um bom projeto e, por isso, conseguimos contornar a crise macroeconômica argentina”.
Esse relacionamento também se refletiu em outros tipos de acordos, como a iniciativa Jujuy Seguro e Interconectado. Assinado em 2019, o programa envolve a empresa chinesa de telecomunicações ZTE, que fornece a Jujuy câmeras de segurança, cabos de fibra ótica, softwares e hardwares.
Em 2020, Margaret Myers, especialista em relações China-América Latina, observou que “executivos chineses fizeram mais de 13 viagens à província de Jujuy, enquanto os representantes do governo de Jujuy fizeram pelo menos 11 visitas à China” nos cinco anos anteriores.
O lítio é fundamental para os laços entre Jujuy e a China. A mina de Cauchari-Olaroz, por exemplo, é administrada pela Ganfeng Lithium, mineradora sediada no leste da China. O projeto tem uma capacidade de produção de 40 mil toneladas de carbonato de lítio por ano.
Outro projeto importante de Jujuy com a China é o Trem Solar Quebrada, que percorre o Vale da Quebrada de Humahuaca e é o primeiro da América Latina movido a energia solar. Além disso, em maio de 2024, uma delegação diplomática de Jujuy assinou um acordo com a Gotion, da cidade chinesa de Hefei, no leste do país, para construir uma usina solar de 200 megawatts no sul de Jujuy.
Lítio e outros minerais
O federalismo argentino permite que as províncias controlem seus próprios recursos naturais. Isso significa que o crescimento constante da exploração de lítio e de todo o setor de mineração de metais está tendo um impacto direto nas relações subnacionais. Isso contrasta com o Chile, por exemplo, onde o governo nacional controla, em última instância, os recursos naturais.
Além de Jujuy, outras províncias mineradoras também estão experimentando vínculos mais dinâmicos com a China. Na vizinha Salta, o projeto de extração de lítio-potássio Mariana, em construção desde 2022, é administrado pela Ganfeng Lithium.
A Ganfeng também é proprietária do projeto de lítio Pozuelos-Pastos Grandes em Salta, que está em fase de estudo; em setembro, a província chinesa sede da Ganfeng, Jiangxi, assinou uma carta de intenções para aprofundar sua cooperação com Salta. A China está também participa da extração de lítio nas salinas de Arizaro e Diablillo, em Salta, por meio da Tibet Summit Resources. Já a Revotech Asia é proprietária do projeto Sal de los Ángeles, no Salar Diablillos.
Em Catamarca, no noroeste da Argentina, está sendo desenvolvido um grande projeto de lítio: Tres Quebradas, de propriedade da Zijin. Catamarca também está discutindo com a Zijin melhorias na estrada conhecida como passagem de San Francisco, o que facilitaria as exportações de lítio a partir do porto de Coquimbo, no Chile.
A Catamarca Mining and Energy, que pertence ao governo da província de mesmo nome, anunciou em 2022 que a Power China financiaria quatro usinas solares. Construídas pela Shanghai Electric Power Construction, elas terão uma capacidade combinada de 600 megawatts. A construção está prevista para começar este ano.
Na província de San Juan, no centro-oeste da Argentina, a Jinko Solar, da China, desenvolveu o parque solar Iglesia-Estancia Guañizuil, inaugurado em 2019. Além disso, a empresa chinesa Shandong Gold tem uma participação de 50% na mina de ouro e prata Veladero, na província.
Os desafios
Diego Guelar, embaixador argentino na China entre 2016 e 2019, acredita que as províncias têm um papel fundamental para tornar os investimentos atraentes para a China. Segundo ele, as províncias têm a capacidade de fornecer apoio e conhecimentos locais, ajudando a facilitar a cooperação. No entanto, o diplomata acrescentou que “um grande número de missões comerciais e empresariais das províncias rumo à China não estão devidamente preparadas”.
Guelar observou que, embora as províncias tenham controle sobre seus recursos e sua política externa, e que a China esteja, em geral, interessada em investir e comercializar com a Argentina, a concretização de projetos é complexa: “Requer preparação prévia e, em muitos casos, garantias [do governo argentino], que também precisam ser negociadas”. Ele acrescentou que o fortalecimento desses laços também requer mais conhecimento de como os chineses operam. “Esse conhecimento geralmente não existe no âmbito federal, muito menos nas províncias”.
De um ponto de vista mais estrutural, Stella Maris Juste, do Conicet, notou um aprofundamento das assimetrias entre a Argentina e a China em nível subnacional, algo que beneficiaria a China: “O outro lado dos investimentos em conectividade territorial, produção de energia e swap cambial pode ser visto nos déficits comerciais, na agricultura extrativista, na dificuldade de expandir a cesta de produtos de valor agregado exportáveis e na dependência financeira”.