“É o que tem”, diz Maria Barrios, encolhendo os ombros. As quatro palavras são cada vez mais ouvidas no galpão da cooperativa Fisherton – PuebloEsther, estrategicamente localizada em frente ao rio Paraná, na Baixada de Balbi, numa área a cerca de 30 minutos de carro de Rosário, na Argentina.
Enquanto conversa, Maria — que também lidera a cooperativa — olha para os cinco peixes que ela tirou do rio depois de um longo dia de trabalho. Um a um, ela os coloca em uma tábua, mede-os com as mãos e mergulha a faca na barriga branca e macia de um deles. Em questão de minutos, ela limpa a magra captura do dia.
Em outros tempos, Maria teria voltado com sua canoa cheia de peixes. Mas, nos últimos dois anos, o infortúnio atingiu esta pequena vila de pescadores como uma praga. Em meados de 2019, antes do início da pandemia de Covid-19, o rio Paraná sofreu com uma intensa estiagem, levando-o, em 2021, ao seu mais baixo nível em mais de 70 anos.
A redução do nível do rio, um dos de maior fluxo das Américas, não só é abrupta como prolongada. Entre as causas determinantes para a queda histórica está a falta de chuvas nas bacias brasileiras dos rios Paraná, Uruguai e Iguaçu.
Um projeto colaborativo
Esta reportagem faz parte do Territorios y Resistencias, um projeto colaborativo realizado entre outubro e dezembro de 2021 pela Chicas Poderosas da Argentina. O coletivo recebe apoio da Embaixada dos Estados Unidos na Argentina.
A estiagem ocorre em um cenário de instabilidade como resultado do aquecimento global, além de profundas mudanças no uso do solo devido à expansão da fronteira agrícola ao longo de toda a bacia.
Após analisar as medições das vazões médias do rio Paraná de 1905 a 2021, pesquisadores da Universidade Nacional de Rosário concluíram que “a queda observada nos anos 2020 e 2021 pode estar fortemente relacionada precipitação média anual bem abaixo dp normal no período anterior”. Os autores Pedro Basile, Gerardo Riccardi e Marina García apresentaram suas descobertas na 15ª Conferência de Ciência, Tecnologia e Inovação da universidade.
A estiagem transformou a paisagem do lugar, que antes via suas terras úmidas. As margens se alargaram, revelando a areia e o lodo que dão ao rio sua cor marrom característica. Verdadeiras relíquias foram descobertas com o recuo das águas, como os fragmentos de uma velha ponte na cidade de Santa Fé, âncoras antigas perto da cidade de Ramallo e, na cidade do Paraná, uma capela da Virgem de Guadalupe que havia sido soterrada no início de 1991 após uma inundação.
Em torno das ilhas que pontilham o curso do Paraná, as mudanças foram mais dramáticas. Muitos riachos e lagoas que dependem de seu principal afluente secaram, e os peixes perderam parte de seus locais de reprodução.
Os cinco peixes que Maria limpa no galpão da cooperativa revelam a outra face da crise ambiental. “As lagoas onde costumávamos ir pescar estão secas. Agora há terras sendo cultivadas, máquinas, gado. Tudo foi destruído”, diz a pescadora. “Se isto continuar, em dois anos não teremos mais peixes”.
Pescadores resistem no rio Paraná
A cooperativa de pescadores Fisherton, na cidade de Pueblo Esther, foi fundada há dez anos. É composta por 19 pessoas, sete delas são mulheres.
Maria coordena o projeto, cuja missão é agregar valor à pesca. O grupo inclui as pessoas que pescam, as que limpam e descascam, e as que cozinham empanadas, almôndegas, milanesas ou canelones que, congelados, são vendidos em feiras e mercados.
“A vida do pescador e da sua família é muito dura”, diz Marcela Báez, cunhada de Maria e chefe de cozinha. Dizer que a vida é ‘dura’ não dá conta de resumir as muitas horas de trabalho ao ar livre, à noite, ao amanhecer, ao frio, faça chuva ou faça sol, com mosquitos, corpos exauridos e um frio de doer os ossos, sem um salário fixo ou benefícios sociais.
A cooperativa nasceu como uma tentativa de acabar com esse ciclo de vulnerabilidade melhorando a renda dos pescadores, já que os frigoríficos costumam pagar pouco pelo peixe: mesmo em tempos de redução da oferta, como é o caso atualmente, o quilo de sável, um um peixe comum na região, pode chegar a 100 pesos (cerca de R$ 4,91) — até cinco vezes menos do que o vendido em alguns supermercados no centro da cidade de Rosário. O valor não é suficiente para comprar nem seis pães.
O projeto comunitário tornou-se essencial à medida que o rio Paraná reduz seu volume. Em julho de 2021, o belo rio, que também é o segundo mais longo da América do Sul depois do rio Amazonas, atraiu a atenção da imprensa argentina e da mídia internacional, como o New York Times e a Al Jazeera.
“O Paraná está secando” ou “O nível do rio está caindo” foram manchetes que tentaram resumir a tragédia ambiental da região em que 70% dos grãos, 96% dos óleos vegetais e 96% das farinhas — ou 37% das exportações agrícolas da Argentina — circularam em 2020, segundo um relatório da Bolsa de Valores de Rosário.
Para Maria, Marcela e seus colegas da cooperativa, o nível do rio não está prejudicando só a já limitada economia da cidade, mas também sua eliminando sua história e semeando preocupações quanto ao futuro.
‘Tem peixe’ em Pueblo Esther
Para chegar à Baixada de Balbi, é preciso atravessar a área de Pueblo Esther e prestar atenção às letras tortas pintadas com cal, anunciando que “tem peixe”. Nos dias de semana, nem uma viva alma é vista nas ruas. Aos sábados e domingos, as pessoas se reúnem perto da praia e dançam cumbia.
No Google Maps, a área é listada como Baixaxa de Barbi, mas esse não é o nome correto. O bairro tem o sobrenome de “Don Balbi”, um dos primeiros pescadores da cidade. Ele construiu um rancho no encontro entre o rio Paraná e a foz do riacho Frías, sítio arqueológico onde os irmãos Carlos e Florentino Ameghino chegaram em 1907. Com o tempo, o local foi sendo povoado por famílias de pescadores, cujas casas estão de frente para o delta do rio. Atualmente, existem cerca de 50 deles, embora nem todos ganhem a vida com a pesca.
A paisagem dessa área começou a mudar há 20 anos, quando a Argentina se posicionou como fornecedor mundial de farelo e óleo de soja.
Isso nos machuca muito. Reduziu nossa área de pesca, nos obrigou a abandonar locais de pesca e fugir
Grandes portos de multinacionais como Cargill, Louis Dreyfus e Toepfer cresceram nas ribanceiras dessa parte do rio Paraná. Indústrias de reparação de grandes balsas que transportam contêiners, como é o caso da Ultrapetrol, foram tomando conta das margens dos rios. Condomínios fechados com nomes bucólicos como Campos de Esther, Tierra de Sueños e Azahares del Paraná também compõem a nova paisagem.
Cada novo empreendimento era celebrado como sinal de progresso. Mas a ilusão, dizem os moradores, foi embora rapidamente. “Alguns de nossos filhos conseguiram emprego nas balsas, mas em três meses eles foram mandados embora”, dizem alguns dos pescadores. “Isso nos machuca muito. Reduziu nossa área de pesca, nos obrigou a abandonar locais de pesca e fugir”, dizem.
A “área de pesca” é como se fosse um lugar sagrado para os pescadores. É a parte do rio em que eles podem trabalhar calmamente e lançar suas redes, sem medo de prendê-las, quebrá-las ou perder suas ferramentas. O tamanho dessas áreas é medido pelo tempo que leva para uma canoa passar por elas.
Tradicionalmente, os pescadores da Baixada de Balbi lançavam a linha de pesca perto do córrego Frias após navegarem por uma hora. Mas o crescimento da indústria forçou-os para o sul. E, agora, com uma área de pesca consideravelmente menor, estão mais próximos da perigosa borda do canal de navegação, a parte mais profunda e de correntezas mais fortes do rio. “Hoje em dia, temos pouco mais de meia hora de pesca”, lamenta Maria.
As mulheres de Baixada de Balbi
Maria Barrios tem pele escura, olhos negros e cabelos compridos, escondidos sob uma touca branca quando limpa os peixes no galpão da cooperativa. O projeto fica em um prédio de tijolos com telhado de latão, construído pela própria comunidade. Maria veio para o local quando criança. Mais de uma vez, em tempos de enchentes, o rio chegava a poucos metros do edifício, erguido próximo a uma ribanceira
Agora, por causa da seca, para chegar ao rio Paraná, não basta descer a ribanceira. É preciso caminhar mais 70 metros, afundando as botas na lama entre canaviais, salgueiros frágeis, arbustos aromáticos e ervas daninhas no espaço que antes era ocupado pelas águas.
Maria percorre esse caminho todas as terças, quartas e quintas-feiras — dias isentos da proibição da pesca comercial, uma ação do governo regional por conta do baixo nível do rio. Apenas na província de Santa Fé, há 4.020 famílias que dependem da pesca, e cerca de 1.628 são pescadores de pequena escala, de acordo com a pesquisa mais recente do departamento ambiental de Santa Fé.
As mulheres são minoria. De acordo com a mesma lista, apenas 85 pescadoras possuem licenças de pesca comercial, e outras 80 têm licenças de subsistência — ou seja, para o consumo próprio ou o de suas famílias. Tradicionalmente, a atividade é levada de pai para filho. Neste universo dominado por homens, as mulheres costumam ter outras tarefas: são elas que limpam e cozinham o peixe. Elas não costumam ir ao rio pescar.
Maria diz que aprendeu a pescar com o pai. Embora seu pai nunca a tenha encorajado, ela começou a pescar para alimentar seus próprios filhos. Se as histórias das pessoas pudessem ser resumidas em uma série de momentos significativos, as de Maria seriam assim: aos 9 anos de idade, ela trabalhou com a mãe em uma fazenda de morangos. Aos 13, ela e seus irmãos foram medieros, ou seja, cultivavam parte das terras de uma fazenda e dividiam os lucros com os latifundiários.
Depois, Maria foi trabalhar em uma fábrica, mas saiu ao ver que nunca seria paga. Foi somente aos 20 anos que ela disse ao pai que ia começar a pescar. Alugou uma canoa e foi para o rio.
Com o tempo, Maria aprendeu a tecer e construir redes. Logo foi dominando a técnica de lançar linha, potes e ganchos. Dominou os ciclos dos peixes, como procurá-los no rio, nas lagoas das ilhas e, sobretudo, aprendeu a negociar o valor dos peixes. Foi então que ela assumiu o comando da cooperativa.
Maria conhece de cor as idas e vindas do rio, mas nunca tinha visto um nível d’água tão baixo como o atual.
O fluxo do Paraná dança ao ritmo das chuvas em sua bacia superior, especialmente no sul do Brasil e do Paraguai e no norte da Argentina. Pesquisadores têm medido a flutuação do volume do rio há anos, caracterizado por quedas no outono e inverno e aumentos na primavera e verão, e também em períodos mais longos, com anos secos e anos úmidos. As pequisas têm um longo histórico de registros que remontam à construção do porto de Rosário no final do século XIX.
Durante o verão de 2020, enquanto as notícias falavam exclusivamente do crescimento dos casos de Covid-19, o Centro de Pesquisa Hidroambiental da Universidade de Rosário (Curiham) começou a notar que o nível do rio estava abaixo do normal.
No inverno seguinte, por quase um mês, a altura do Paraná ficou abaixo de zero na escala usada para medir seu nível na zona portuária de Rosário, enquanto a altura média para aquela época do ano deveria ser de três metros, segundo o Instituto Nacional da Água.
Gerardo Riccardi e Pedro Basile, pesquisadores do Curiham, contam que a história de quase 140 anos de medições dos níveis do Paraná inclui vários eventos severos. Mas desde o início dos anos 1970, o regime hidrológico do rio mudou, com valores máximos e mínimos extremos.
Para os especialistas, a variação do regime hidrológico do rio é explicada por diversos fatores observados na bacia a partir dos anos 1960, tais como o aumento da precipitação em escala regional, o desmatamento e as mudanças no uso do solo, que contribuíram para um escoamento mais superficial da água.
Rio Paraná em estado de emergência
No final de julho de 2021, o governo argentino declarou emergência hídrica para os territórios localizados nas margens dos rios Paraná, Paraguai e Iguaçu.
O documento, assinado pelo presidente Alberto Fernández, afirma que o déficit de precipitação nas bacias superiores “é um dos fatores determinantes para os atuais baixos níveis históricos d’água, considerados os mais importantes em nosso país nos últimos 77 anos”.
A redução do nível do rio, continua o decreto, pode prejudicar “o abastecimento de água potável, a navegação e as operações portuárias, a geração de energia hidrelétrica e as atividades econômicas ligadas à exploração da bacia”.
A área afetada pela seca não é apenas extensa, mas também extremamente diversa. A falta d’água está afetando sete províncias: Formosa, Chaco, Misiones, Corrientes, Santa Fé, Entre Ríos e Buenos Aires, que juntas perfazem 809 mil quilômetros quadrados, um terço da superfície continental do país, e abrigam 24 milhões de pessoas, ou seja, mais da metade da população argentina.
Para algumas entidades ambientais que integram a Multisetorial de Humedales, organização focada na preservação do rio Paraná, a declaração de emergência foi emitida tarde demais. Elas também pontuam que o quadro foi agravado por obras de adaptação dos sistemas de abastecimento d’água e por perdas geradas no transporte de grãos.
Embora o rio esteja subindo, as projeções não são animadoras
De acordo com dados da Bolsa de Valores de Rosário, entre janeiro e meados de setembro de 2021, a queda do nível do rio significou uma perda de 620 milhões de pesos (R$ 30,4 milhões) nas exportações de farelo e óleo de soja.
Após declarar emergência, o governo anunciou que havia começado a negociar com o Banco Interamericano de Desenvolvimento a possibilidade de adicionar US$ 100 milhões (R$ 520 milhões) aos US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão) já prometidos para lidar com enchentes e terremotos.
O então chefe do Gabinete de Ministros, Santiago Cafiero, disse que os trabalhos seriam autorizados por meio do Fundo de Emergência da Água, administrado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento (Enohsa), e envolveria investimentos de 1 bilhão de pesos (R$ 47 milhões) para ajudar as localidades afetadas.
Santa Fé aderiu à emergência hídrica em agosto, um mês após o decreto nacional. Mas, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente local, a província ainda não havia recebido um único centavo do fundo de emergência até o final de outubro de 2021.
“Já enviamos toda a documentação, com os requisitos correspondentes, ao Gabinete Nacional. Agora estamos aguardando a alocação de recursos”, declararam.
Uma tempestade de verão
Micaela Tosco tem 24 anos e olhos muito parecidos com os de Maria, sua mãe. Ela não vive na Baixada de Balbi, mas em uma casa humilde na parte sul de Rosário. Todas as manhãs, ela viaja uma hora de ônibus para trabalhar na cooperativa.
Micaela era muito jovem quando Maria começou a pescar. Ela não se lembra da primeira vez que foi com sua mãe na canoa, mas se lembra da última. Foi depois de uma tempestade de verão, daquelas que se formam rapidamente e caem de forma violenta. As duas foram encontradas no meio do rio.
As ondas eram enormes, lembra a jovem. Sua mãe virou seus irmãos e ela de barriga para o fundo da canoa e pediu-lhes que tapassem os olhos. Micaela pensou que seria o fim, até que finalmente conseguirem chegar à margem do rio. Desde então, nenhum dos sete filhos de Maria pescou com ela.
A memória chega como um pássaro à mesa onde as mulheres transformam dez quilos de peixe em empanadas, tortas, almôndegas, pães ou salsichas.
Ao fundo, o rádio fala sobre a cúpula climática em Glasgow. Mais de 10 mil quilômetros separam Pueblo Esther da cidade escocesa, mas as preocupações são as mesmas.
“Todos nós pescadores estamos cientes do que está acontecendo com o clima”, comenta Maria. Ela explica que certas espécies de peixes estão desaparecendo e que o período entre as tempestades está cada vez mais curto.
Os peixes do Paraná reproduzem um ditado popular: o grande come o pequeno. No início desta cadeia está o sável, cujas ovas e larvas alimentam outras espécies como bogue, surubi e dourado. O sável exige, para sua reprodução, as oscilações naturais do rio e das lagoas onde seus alevinos se desenvolvem.
Para que haja peixe amanhã, tem que haver peixe hoje
O projeto de Avaliação Biológica e Pesqueira de Espécies de Interesse Esportivo e Comercial, que envolve o Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca e as províncias do médio e baixo rio Paraná, foi criado em 2005 para aprofundar o conhecimento dos recursos pesqueiros na área. Para determinar a situação, são realizados periodicamente estudos de variedade, quantidade e tamanho de espécies. As avaliações de 2021 indicaram que, devido ao baixo nível do rio, já se passaram dois anos em que a reprodução do sável está em baixa.
Gaspar Borra, advogado ambiental e assessor do Ministério do Meio Ambiente de Santa Fé, alerta que a situação traz incerteza sobre o futuro da espécie. “Temos que acompanhar o que acontece neste verão porque, embora o rio esteja subindo, as projeções não são animadoras e, se os fluxos permanecerem baixos, esta será outra estação ruim para a reprodução”, diz Borra.
Por este motivo, diz o assessor, foram tomadas medidas para reduzir a pressão sobre a pesca, proibindo a captura em determinados dias e limitando a cota de exportação de pescado. Em 2019, o litoral argentino exportou 18 mil toneladas de sável. Naquele ano, todas as províncias do litoral (Entre Ríos, Santa Fé, Corrientes e Chaco) concordaram em baixar a cota de exportação em um terço.
“Para que haja peixe amanhã, tem que haver peixe hoje”, aponta Borra, enfatizando que a variável ambiental não pode ser dissociada da socioeconômica. “Há comunidades que, por razões culturais, dependem do rio. Temos que buscar um equilíbrio”.
Biodiversidade do rio Paraná
O Paraná abriga cerca de 200 espécies de peixes com uma dinâmica única no mundo devido à sua capacidade de adaptação aos fluxos irregulares de seca e inundações.
Se olharmos para toda essa riqueza, não apenas para os peixes de interesse comercial, “podemos dizer que muito pouco se sabe sobre o que acontece no rio”, diz Andrés Sciara, reitor da Faculdade de Ciências Bioquímicas e Farmacêuticas da Universidade Nacional de Rosário e especialista em biotecnologia aplicada à aquicultura de espécies nativas.
Há espécies que praticamente desapareceram da região. O pacu é um exemplo claro: muitos pescadores não sabem identificá-lo, confundindo-o com as palometas ou piranhas. O mesmo acontece com o manguruyu, um dos maiores peixes da bacia. Um estudo mostra ainda a vulnerabilidade de arraias, especialmente a arraia gigante do rio, afetada pela pesca acidental e pela perda de habitat.
Vanina Villanova é doutora em Ciências Biológicas, pesquisadora do Conicet e do Laboratório Misto de Biotecnologia Aquática no Aquário do Rio Paraná em Rosário. Ocasionalmente, os pescadores levam para ela as espécies que não conseguem identificar. Esse foi o caso de um manguruyu, considerado uma espécie exótica pelo o pescador que o encontrou.
Os pescadores são sempre acusados por tudo que acontece no rio Paraná
A cientista explica que a fauna deve ser bem cuidada e pontua que o grupo sofre grande pressão da atividade pesqueira — seja ela em larga escala para exportação, acidental ou esportiva. As mudanças na paisagem, como a dragagem do rio e a modificação dos cursos d’água nas ilhas, conspiram contra a sobrevivência das espécies.
“Enquanto a própria dinâmica desses peixes lhes permite evitar as águas baixas do rio, agora há maior atividade humana: poluição, pesca, transporte, mudanças no uso da terra nas áreas úmidas e obras que têm repercussões em toda a cadeia”, diz a cientista.
Para preservar as espécies, especialistas defendem a proteção de áreas naturais, especialmente onde os peixes se reproduzem, e o controle da exportação. Alguns sugerem eliminar a venda internacional de peixe de água doce como ferramenta de preservação.
“Essas são medidas têm um custo político e são um pouco drásticas, mas devemos pensar nelas”, diz Villanova.
‘Eu não trocaria minha vida por nada’
Em fevereiro de 2005, foi realizada a primeira reunião do Conselho Provincial de Pesca, órgão composto por 20 pessoas entre funcionários provinciais, municipais, representantes de frigoríficos, abatedouros, empresários do turismo, clubes de pesca esportiva, ONGs, universidades e comitês regionais de pesca. Pescadores também participaram. A reunião ocorre cerca de seis vezes ao ano para analisar a realidade do setor.
O baixo nível das águas do Paraná e suas consequências na pesca foram o principal tema das últimas reuniões, nas quais, segundo Maria, pescadores discutiram em pé de igualdade com biólogos e políticos. “Para estar lá, tivemos que aprender, que nos preparar muito, e pouco a pouco estamos nos fazendo ouvir”, diz.
“Os pescadores são perseguidos por tudo o que acontece no Paraná”, diz Maria. Entretanto, ela argumenta que é a pressão imobiliária em terrenos costeiros, a dragagem do rio, o intenso tráfego de navios e o uso de pesticidas que danificam o corpo d’água. “Os pescadores são sempre acusados de serem os únicos culpados por tudo”. Micaela e Marcela compartilham da mesma indignação.
“Eu não mudaria minha vida por nada”, diz a líder da cooperativa, mostrando sua tatuagem de um belo peixinho dourado pulando sobre a água. Maria tatuou uma das nádegas quando completou 40 anos, e o reumatismo e a asma a pressionavam a parar de pescar.
Maria diz que o rio ainda a chama, que a água a acalma. Com as águas reduzidas, muitos pescadores deixaram o rio para buscar outro emprego, e houve escassez de peixe na cooperativa. Mas ela não parou de pescar.
Esta reportagem faz parte do Territorios y Resistencias, um projeto colaborativo realizado entre outubro e dezembro de 2021 pela Chicas Poderosas da Argentina. O coletivo recebe apoio da Embaixada dos EUA na Argentina e é composto por uma equipe de mais de 35 mulheres e pessoas LGBTTQI+ de todo o país.