Clima

Sob Milei, Argentina paralisa treinamento ambiental

Governo argentino ameaça desmonte da Lei Yolanda, ferramenta essencial para a educação ambiental defendida por ativistas
<p>Pessoa caminha em meio a incêndio florestal em 2020 no delta do rio Paraná, Argentina. Em um país com tantos problemas ambientais, a Lei Yolanda foi considerada um marco histórico ao exigir que todos os funcionários públicos recebessem treinamento sobre meio ambiente e mudanças climáticas (Imagem: © Eduardo Bodiño / Greenpeace)</p>

Pessoa caminha em meio a incêndio florestal em 2020 no delta do rio Paraná, Argentina. Em um país com tantos problemas ambientais, a Lei Yolanda foi considerada um marco histórico ao exigir que todos os funcionários públicos recebessem treinamento sobre meio ambiente e mudanças climáticas (Imagem: © Eduardo Bodiño / Greenpeace)

Yolanda Benjamina Ortiz, química argentina nascida em 1926, começou sua carreira na petroleira britânica Shell e depois seguiu para o funcionalismo público. 

Ela foi a primeira secretária de Meio Ambiente da Argentina, nomeada em 1973 pelo presidente Juan Perón, que havia retornado ao poder após quase duas décadas de exílio na Espanha. Ortiz, por sua vez, acreditava na conexão intrínseca entre as pautas ambientais e econômicas, defendendo a urgência de uma “revolução mental” para melhorar a relação da sociedade com a natureza. A química morreu em junho de 2019, aos 94 anos, deixando um legado de pioneirismo nas políticas públicas voltadas ao meio ambiente.

Quando Ortiz comemorou seu 90º aniversário, foi criada a organização Eco House, inicialmente dedicada à educação ambiental, mas que depois assumiu uma atuação mais política. Representantes da Eco House passaram a se reunir com legisladores de diferentes partidos para discutir uma questão preocupante: a Argentina, na visão do grupo ativista, não estava empenhando suficientes esforços para promover a educação ambiental. 

“Tínhamos muita clareza de que precisávamos fazer alguma coisa”, disse Maria Aguilar, diretora de educação da Eco House.

Em uma reunião no escritório da organização com a então deputada Camila Crescimbeni, do partido Proposta Republicana (PRO), formou-se um plano para exigir que todas as pessoas que ocupam cargos públicos aprendam sobre questões ambientais básicas. “Tudo começou com essa conversa”, disse Aguilar.

Tentar encontrar um consenso em relação à ideia foi difícil. “Tivemos muitas, muitas, muitas reuniões com diferentes políticos de diferentes partidos, tentando ativar isso”, disse Aguilar. “Ninguém era contra, mas sempre havia questões políticas no meio”. Mesmo assim, a ideia ganhou força com o apoio de organizações socioambientais, universidades e jovens ativistas, além da campanha veiculada nos meios de comunicação.

Até a Unesco entrou na jogada: em 2021, a agência da ONU disse que a educação ambiental deveria ser um componente central dos currículos escolares em todo o mundo até 2025. Na mesma época, a Argentina aprovou uma lei que exigia educação ambiental em escolas, universidades e outras instituições públicas.

Porém, para Aguilar, o projeto desenvolvido junto a Crescimbeni foi especial. “Era preciso garantir que a educação ambiental chegasse a todos os setores da sociedade, não apenas às crianças. Geralmente, ela é pensada com esse foco, mas não é suficiente, porque não se pode esperar até as crianças crescerem”.

Julio Díaz, secretário do 1º Tribunal Criminal Federal de La Plata, na província de Buenos Aires, disse que o treinamento ambiental é de “importância vital” para o Judiciário, porque aumenta a conscientização sobre a complexidade dos temas ambientais. Ele acrescentou que isso também ajuda as pessoas a se verem como integrantes do meio ambiente, com responsabilidades comuns nos impactos sobre a natureza.

Para que a lei fosse aprovada, duas senadoras de lados opostos do espectro político trabalharam juntas. A senadora María Eugenia Catalfamo, da coalizão de centro-esquerda Frente de Todos, apresentou um projeto sobre o tema e, alguns dias depois, uma iniciativa semelhante foi levada ao Congresso pela senadora Gladys González, da coalizão de centro-direita Juntos pela Mudança. “Isso foi incrível”, lembrou Aguilar. “Essa aliança virou uma espécie de amizade”.

Após unificarem os textos das duas casas em um único projeto de lei, ele foi aprovado pelo Congresso argentino, quase por unanimidade, em dezembro de 2020.  

Desde então, a nova lei exige que todos os funcionários públicos, seja no Executivo, Legislativo ou Judiciário, recebam treinamento em temas ambientais e de mudanças climáticas. A Lei Yolanda, batizada em homenagem a Ortiz, é considerada pioneira no mundo.

Um guia oficial sobre a lei classifica o texto legal como um “novo paradigma” para o país: “A aprovação dessa lei não só cristalizou um momento específico em nosso país e seus atores, como também toda a extensa e poderosa tradição de lutas históricas e conquistas do ambientalismo na Argentina”.

O guia, que inclui um prefácio de um amigo de Ortiz, explica que a lei é estratégica, buscando lidar com questões urgentes e com um objetivo político de longo prazo: “Em resumo, ela busca garantir que essa perspectiva seja levada em conta ao pensar, planejar e implementar programas e ações de instituições estatais”.

A Argentina tem várias leis ambientais muito boas, mas difíceis de implementar. A maioria delas não é aplicada na vida real
Maria Aguilar, diretora de educação da Eco House

Aguilar disse que a aprovação da Lei Yolanda foi ótima, mas foi apenas o começo do desafio. “A Argentina tem várias leis ambientais muito boas, mas difíceis de implementar. A maioria delas não é aplicada na vida real”.

O governo argentino chegou a realizar uma consulta pública sobre como a Lei Yolanda deveria ser implementada. Porém, segundo Aguilar, a maioria dos participantes era de organizações do agronegócio e do setor petrolífero. “Na Argentina, a agricultura é a base de nossa economia. Eles foram muito cuidadosos com o que seria dito e com o fato de não haver nada que fosse contra o agronegócio”, disse.

Na época, o governo entrou em contato com a Eco House em busca de apoio para lidar com o tema. “Felizmente, havia pessoas muito comprometidas naquele momento tentando levar essa implementação para o caminho certo”, disse Aguilar.

Implementação da lei

Conforme a normativa que buscou implementar a lei, os participantes deveriam cumprir 16 horas em seis módulos obrigatórios e dois opcionais, abrangendo assuntos como biodiversidade e ecossistemas, mudanças climáticas, economia circular e desenvolvimento sustentável. 

O artigo 7º da lei determina que as informações incluídas sejam “claras, precisas e cientificamente fundamentadas, sendo ajustadas ao órgão e ao contexto em questão”. As pessoas que não fizerem o treinamento podem ser sancionadas e ter seu nome exposto em uma lista online, segundo o artigo 12º. 

A Eco House não considerou que o curso de capacitação do governo central, que consistia em vídeos e leituras obrigatórias, fosse bom o suficiente. Por isso, desenvolveu seu próprio programa, com aulas reais nas quais os participantes tinham a possibilidade de interagir e fazer perguntas — iniciativa depois validada pelo governo.

Aguilar elogia as equipes que trabalham na implementação da Lei Yolanda e de toda a legislação de educação ambiental. “Essas pessoas não eram políticas, eram técnicas e estavam muito interessadas em trabalhar conosco, porque sabiam que os partidos podem mudar, mas a sociedade civil continua”, afirmou.

Em razão da estrutura federalista argentina, as províncias tiveram que adotar a lei individualmente (todas, exceto uma, já o fizeram) e puderam criar suas próprias diretrizes. Aguilar disse que a província de Buenos Aires costuma ser uma das mais progressistas, mas sua Lei Yolanda exigiu apenas três módulos de 45 minutos cada. “Eles até nos perguntaram o que achávamos disso, e eu pensei: ‘Vocês estão brincando? Isso é mais curto do que o filme do Titanic’”. Já no Chaco, que tem uma das piores taxas de desmatamento do mundo, tentou implementar um programa mais ambicioso.

vista aérea do desmatamento na província argentina do Chaco
Desmatamento na província argentina do Chaco, cujo nome faz referência à segunda maior região de floresta da América do Sul depois da Amazônia. Esse ecossistema também tem uma das piores taxas de desmatamento do mundo (Imagem: © Martin Katz / Greenpeace)

Um aspecto importante da lei é que ela se aplica a todos, desde os funcionários públicos mais jovens até o mais alto cargo do país. Quando o então presidente Alberto Fernández realizou seu treinamento em 2022, ele publicou um comunicado à imprensa sobre sua experiência.

“Tudo estava avançando muito rápido para uma lei aprovada em 2020”, contou Aguilar. “A Lei Yolanda tinha seu site, e era possível ver quantas pessoas tinham feito o curso, tanto conosco quanto com o governo”.

Negacionismo climático e ambiental

Em 2023, a Argentina elegeu como presidente Javier Milei, negacionista climático e opositor das políticas contra o desmatamento. Em seu segundo ano no cargo, Milei agora planeja repetir os passos dos Estados Unidos de Donald Trump e retirar a Argentina do Acordo de Paris. 

A página da Lei Yolanda ainda consta do site do governo argentino, mas muitos detalhes sobre a legislação desapareceram. “Não é possível baixar nenhum documento referente à lei, ao programa de estudos, nada”, disse Aguilar. “Ninguém ficou a cargo disso. Tenho enviado e-mails desde que a nova gestão começou, e você nunca sabe para quem escrever, porque ninguém está lá”.

Já no Judiciário, o programa continuou ao longo de todo o ano passado. O curso específico do setor de Justiça abrange os principais princípios científicos e jurídicos sobre uma série de questões ambientais locais e globais. No que diz respeito ao clima, o programa entra em detalhes sobre mitigação e adaptação, sistemas de energia e como as leis nacionais e internacionais influenciam essas questões. Uma das seções, inclusive, aborda o Acordo de Escazú.

Julio Díaz, do 1º Tribunal Criminal Federal de La Plata, acredita que o conteúdo do curso é realmente inovador, porque a maioria das pessoas que trabalha no Judiciário não teve nenhum treinamento em questões ambientais em seus cursos de graduação, “muito menos em sustentabilidade”.

Javier Milei acena para apoiadores na Casa Rosada enquanto veste a faixa presidencial
Desde que assumiu o cargo, em dezembro de 2023, o governo Milei vem tentando flexibilizar as restrições à mineração perto de geleiras e remover proteções florestais, entre outras medidas contra o meio ambiente (Imagem: Florencia Martin / Alamy)

Mais de sete mil pessoas foram capacitadas pelo programa, incluindo juízes, secretários, estudantes e outros funcionários do setor judicial.

“Pelos relatos que tive de colegas e de muitos outros na instância na qual trabalho, posso dizer que a contribuição [do treinamento] é de enorme relevância para a gestão de casos que tenham conflitos ambientais como objeto”, observou Díaz. “O treinamento oferece um conjunto de ferramentas de gestão, tanto para organizar os procedimentos judiciais quanto para realizar atos específicos no meio ambiente afetado”.

Ele acrescentou que o treinamento contribui para “um melhor gerenciamento dos conflitos ambientais judicializados”. 

Isso ocorre mesmo que não haja informações oficiais sobre o monitoramento da lei, nem mesmo um órgão encarregado desse trabalho. A reportagem também não obteve resposta do governo.

Ainda é incerto que a Lei Yolanda consiga um dia realizar a “revolução mental” que Ortiz tanto sonhou, mas o objetivo de muitos ambientalistas agora é manter a legislação viva até a próxima eleição. “É muito triste e muito frustrante, mas quando você entende o jogo político, precisa aprender a jogar e encontrar aliados onde puder”, disse Aguilar. 

Ela contou que as ameaças do novo governo conectaram as organizações ambientais de uma forma que não se via antes na Argentina. “Quando a Milei surgiu, estávamos com muito medo do futuro. Demos muitos passos para trás. Agora temos que voltar novamente às discussões mais básicas de anos atrás”; 

A gestão Milei tem se empenhado na desregulamentação, tentando diminuir as restrições à mineração perto de geleiras, removendo proteções florestais e promovendo um iminente colapso da produção científica no país. Ele também estabeleceu laços com outros negacionistas climáticos, tornando seu governo uma grande ameaça para o meio ambiente — e não apenas na Argentina. “É estranho ter que falar sobre questões básicas como ‘as mudanças climáticas existem’”.

Perguntamos a Aguilar o que ela acha que Yolanda Ortiz falaria sobre ter uma lei com seu nome, que também foi o resultado do trabalho de muitas outras mulheres. “Acho que ela ficaria muito, muito orgulhosa”.

“Ela também ficaria deprimida com o que aconteceu desde então. Mas aí ela diria ‘pronto, agora preciso trabalhar mais do que nunca’”.

Esta reportagem foi publicada originalmente no The Wave.

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