Justiça

Opinião: Justiça climática agora é obrigação legal, não só promessa

Pareceres consultivos de dois tribunais internacionais marcam virada de chave para justiça ambiental e climática, escrevem especialistas
<p>Adenir Ferri, um dos dois milhões de gaúchos afetados pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. Este ano, os pareceres consultivos de dois tribunais internacionais determinaram que os Estados têm o dever de reparar danos resultantes do descumprimento de suas obrigações climáticas (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2pRap8p">Thales Renato</a> / <a href="https://www.flickr.com/people/midianinja">Mídia NINJA</a>, <a href="https://creativecommons.org/licenses/by-nc/2.0/deed.pt-br">CC BY NC</a>)</p>

Adenir Ferri, um dos dois milhões de gaúchos afetados pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. Este ano, os pareceres consultivos de dois tribunais internacionais determinaram que os Estados têm o dever de reparar danos resultantes do descumprimento de suas obrigações climáticas (Imagem: Thales Renato / Mídia NINJA, CC BY NC)

Nos últimos meses, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiram pareceres consultivos que constituem marcos históricos para a justiça climática global. Os dois tribunais determinam que os países devem agir com urgência para garantir o direito a um ambiente saudável, incluindo um clima saudável, para evitar danos severos ao planeta. Da mesma forma, os Estados devem garantir reparações pelos danos causados.

As duas decisões foram resultado de uma pressão jurídica e da sociedade civil, ressaltando a necessidade de reconhecer as causas e consequências da emergência climática, bem como as obrigações estatais e de atores privados. No processo que culminou com o parecer consultivo da Corte IDH, publicado em 3 de julho, centenas de povos indígenas, comunidades, organizações da sociedade civil e ativistas dos direitos humanos participaram por meio de audiências públicas e contribuições escritas. Por sua vez, o parecer consultivo da CIJ, publicado em 23 de julho, foi solicitado por Vanuatu e apoiado por mais de 130 países.

Juntos, esses documentos consolidam um quadro jurídico internacional abrangente e abrem as portas para as transformações estruturais que nossas sociedades e ecossistemas exigem. Elas reconhecem que as mudanças climáticas são “um problema existencial de proporções planetárias que ameaça todas as formas de vida” e os direitos humanos. Dada a gravidade da situação, elas reforçam que os Estados têm obrigações legais que incluem a prevenção, mitigação, adaptação e reparação dos danos climáticos.

Os tribunais também afirmaram que os Estados devem cooperar diante da emergência climática. A CIJ sustenta que todos os Estados, incluindo aqueles não signatários de tratados climáticos, têm a obrigação de prevenir danos significativos ao clima, conforme o direito internacional. Por sua vez, a Corte IDH afirmou que os Estados têm um dever de prevenir danos climáticos, mesmo além de suas fronteiras. O parecer do tribunal interamericano também destacou a necessidade de adotar políticas de gênero, abordagens interseccionais e espaços de participação popular na formulação de políticas climáticas. Os países também precisam empregar medidas específicas em contextos de populações mais vulneráveis, como crianças, povos indígenas e comunidades tradicionais. 

Sem desconsiderar a riqueza das contribuições de ambos os pareceres, há dois aspectos centrais dessas decisões para tentar assegurar o cumprimento dos direitos daqueles que sofrem as consequências mais graves da crise climática.

Juíza Nancy Hernández López lê resumo do parecer consultivo da Corte IDH
Juíza Nancy Hernández López lê resumo do parecer consultivo da Corte IDH. O tribunal determinou que a reparação não pode se limitar à compensação econômica e deve ser transformadora, participativa, culturalmente relevante e baseada na melhor ciência disponível (Imagem: Corte IDH / Flickr, CC BY-SA)

Reparação pelos danos causados

Ambos os tribunais explicaram que a reparação de danos climáticos é uma obrigação legal específica, exigível e multidimensional. Sem considerar as nuances das argumentações usadas em cada caso, as duas cortes afirmaram que os Estados têm o dever de reparar os danos resultantes do não cumprimento de suas obrigações climáticas – por ação ou omissão – com medidas de restituição ecológica, reabilitação, compensação ou reparação, além de garantias para os territórios afetados.

Uma das contribuições mais significativas do parecer da Corte IDH é o reconhecimento da reparação abrangente como um pilar fundamental da ação climática, juntamente com a mitigação e a adaptação. Essa é uma resposta às demandas históricas do Sul Global diante de uma omissão significativa no regime climático internacional: a exclusão da responsabilidade jurídica no artigo 8º do Acordo de Paris, deixando milhões de pessoas afetadas pelo clima sem acesso a uma reparação eficaz.

O Fundo de Perdas e Danos — implementado a partir da conferência climática da ONU de 2023, a COP28 — representa um avanço político importante no reconhecimento das responsabilidades pelos impactos das mudanças climáticas, mas ele é nitidamente insuficiente do ponto de vista da justiça climática e do direito internacional. Como apontou a Corte Interamericana em seu parecer, esse mecanismo não garante a reparação integral de perdas e danos atribuíveis aos Estados, não assegura uma distribuição justa da dívida climática, nem substitui as obrigações internacionais de reparação ligadas às ações ou omissões que agravam a crise climática. Consequentemente, embora o fundo possa servir como um instrumento de alívio imediato, ele não responde às demandas estruturais de reparação, responsabilização e justiça que a crise climática exige. O reconhecimento da Corte IDH abre as portas para uma reforma desse mecanismo, como a participação direta de comunidades afetadas e adoção de critérios baseados nos direitos dessas populações.

A Corte IDH afirmou ainda que a reparação deve abordar “as causas estruturais que agravam a vulnerabilidade de certas pessoas, povos e ecossistemas”. O parecer destacou ainda que a reparação não pode se limitar à compensação econômica: ela deve ser transformadora, participativa, culturalmente relevante e projetada com base na melhor ciência e conhecimento disponíveis.

Participação, justiça e proteção de ativistas

O parecer da CIJ reconheceu que os tratados sobre acesso à informação e participação pública são ferramentas relevantes para lidar com as mudanças climáticas. O parecer do tribunal enfatizou o dever de cooperação, a necessidade de boa-fé nas ações estatais e a proteção especial para as populações mais vulneráveis. Além disso, a CIJ ressaltou que os Estados precisam estabelecer processos de tomada de decisão transparentes, acessíveis e inclusivos — condições indispensáveis para uma ação climática legítima e eficaz.

Já a Corte IDH menciona os padrões definidos pelo Acordo de Escazú – tratado regional da América Latina e do Caribe sobre direitos ambientais. A Corte Interamericana dedica uma parcela considerável de seu parecer à ideia de que o acesso à informação ambiental, a participação efetiva nas decisões climáticas e o acesso à justiça ambiental são princípios essenciais para o cumprimento dos direitos humanos. Conforme o parecer, os países devem produzir informações úteis e precisas, combater a desinformação, permitir uma participação popular ampla e garantir recursos acessíveis, eficazes e adequados para as pessoas afetadas pela crise climática. Isso inclui adaptações para povos indígenas, crianças, pessoas com deficiência e outras comunidades historicamente excluídas, como as populações pesqueiras. 

Nessa mesma linha, o parecer da Corte IDH reconheceu a escalada de violência contra ativistas ambientais e reforçou a obrigação de protegê-los, bem como a de prevenir, investigar e punir qualquer forma de perseguição contra eles, levando em consideração os diferentes riscos enfrentados por cada grupo. Além disso, o documento recomendou a revisão dos marcos regulatórios que têm sido usados para criminalizar o trabalho de ambientalistas e ativistas dos direitos humanos.

Advogado-geral de Vanuatu, Arnold Kiel Loughman
Advogado-geral de Vanuatu, Arnold Kiel Loughman, fala no Tribunal Internacional de Justiça, na Holanda. O parecer consultivo do TIJ foi solicitado por Vanuatu e apoiado por mais de 130 países (Imagem: Frank van Beek / ICJ-CIJ)

Justiça climática como dever jurídico

O poder jurídico e político das decisões da CIJ e da Corte IDH deve-se, em parte, ao fato de elas terem sido publicadas em um momento histórico e crítico para a humanidade. Os movimentos sociais têm à sua disposição múltiplas jurisdições internacionais — incluindo a decisão de 2024 do Tribunal Internacional do Direito do Mar e o vindouro parecer da Corte Africana dos Direitos Humanos — para construir um novo paradigma jurídico sobre o clima com base na proteção dos direitos humanos e da natureza.

Diante da emergência climática, esses pareceres constituem indiscutíveis obrigações jurídicas para tentar acabar com a impunidade nos litígios climáticos e exigir a transformação das estruturas que perpetuam os danos.

Os marcos legais criados pelos dois tribunais agora precisam chegar às comunidades afetadas, fortalecendo a mobilização social e orientando decisões judiciais, reformas legislativas e políticas públicas. Uma coisa eles deixam clara: a justiça climática não é mais apenas um sonho, é uma obrigação jurídica urgente.

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