Pela primeira vez, países do mundo todo concordaram em abandonar os combustíveis fósseis para evitar as piores consequências da crise climática. O acordo firmado na cúpula climática da ONU deste ano, a COP28, pede que as nações transformem rapidamente suas matrizes energéticas de forma justa e ordenada, mas analistas identificaram brechas que poderiam atrasar os cortes nas emissões de CO₂.
“Temos a base para realizar uma mudança transformadora. É um pacote equilibrado e histórico para acelerar as ações climáticas”, disse Sultan al Jaber, presidente da COP28, ao anunciar o que ele chamou de “Consenso dos Emirados Árabes Unidos”, nesta quarta-feira, dia 13.
Al Jaber, que também é CEO da Adnoc, estatal petrolífera dos Emirados Árabes Unidos, acrescentou que o setor de petróleo e gás está “se preparando pela primeira vez” para atingir metas ambiciosas de redução de emissões, embora observadores tenham criticado a influência do lobby dos combustíveis fósseis na redação do acordo e em toda a cúpula.
Delegados de quase 200 países se reuniram por duas semanas em Dubai para concluir o Balanço Global, que avalia o progresso dos países na implementação do Acordo de Paris. Assinado em 2015, o tratado tem como meta central limitar o aquecimento global a 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais até o fim do século — a temperatura média global já aumentou 1,2 °C desde a era pré-industrial.
A COP28 largou relativamente bem: logo no primeiro dia, foi firmado o acordo para dar início ao fundo de perdas e danos, que deve auxiliar na recuperação das nações mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas. Porém, o fundo só arrecadou até agora cerca de US$ 700 milhões — valor que representa menos de 0,2% dos prejuízos que esses países já sofrem com a crise climática a cada ano.
No entanto, à medida que a cúpula avançava, as negociações foram paralisadas — e os delegados dos países penaram para chegar a um acordo sobre o futuro dos combustíveis fósseis. Mais de cem nações pressionaram para que o acordo final da COP28 incluísse uma posição assertiva sobre a eliminação do uso de petróleo, gás e carvão, mas enfrentaram a oposição de outros, incluindo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).
Essas discordâncias fizeram com que a cúpula se alongasse, terminando um dia depois do planejado. Após a rejeição de um primeiro rascunho, visto por muitos como pouco ambicioso, o texto final agora convoca os países — mas não os obriga — a abandonar o uso de combustíveis fósseis até 2050, eliminando também os subsídios “ineficientes” que incentivam seu uso. O texto, porém, também reconhece o papel dos chamados “combustíveis de transição”, em referência ao gás natural.
O texto pede ainda que os países tripliquem a capacidade de geração de energia renovável e dobrem a taxa anual de melhorias na eficiência energética até 2030. No entanto, o acordo não explica como essas metas seriam atingidas, nem esclarece qual seria o apoio financeiro necessário para que os países as alcancem. O financiamento insuficiente para as ações climáticas foi um dos principais pontos de divergência na cúpula.
Os combustíveis fósseis foram o foco da COP28, mas o texto também enfatizou a importância de conservar, proteger e restaurar as florestas e outros ecossistemas para atingir as metas do Acordo de Paris. Na COP26, em 2021, os países se comprometeram com a meta de combater o desmatamento e a degradação florestal. Mas, segundo um relatório publicado este ano, ela não foi cumprida.
O texto cria uma oportunidade para que a indústria dos combustíveis fósseis siga ditando as regrasSusana Muhamad, ministra do Meio Ambiente da Colômbia
Susana Muhamad, ministra do Meio Ambiente da Colômbia, comemora o que ela considera ser, pela primeira vez, a participação da ciência nas decisões de uma conferência climática. No entanto, ela alerta para os riscos dos combustíveis de transição, que atrasariam o abandono dos combustíveis fósseis — o gás natural, aliás, é um combustível fóssil. “O texto cria uma oportunidade para que a indústria dos combustíveis fósseis continue ditando as regras e, assim, não conseguiremos cumprir as metas de Paris”, afirmou Muhamad.
Augusto Duran, especialista em energia do Movimento Cidadão contra a Crise Climática, entende que a menção “tímida e pouco clara” à redução do uso de combustíveis fósseis é “irresponsável e insuficiente” e, portanto, permitiria aos países escolherem se querem ou não continuar dependendo de petróleo, gás e carvão.
Combustíveis fósseis, foco da COP28
Para a América Latina, a COP28 marcou as diferenças entre os países com propostas ambiciosas para uma transição acelerada rumo às energias renováveis, como a Colômbia, e outros com planos para seguir com a exploração de combustíveis fósseis, como o Brasil. O único ponto com o qual todos os latino-americanos concordam é a necessidade de mais financiamento de nações desenvolvidas para reduzir suas emissões.
A região detém cerca de 15% das reservas de petróleo e gás natural do mundo e menos de 1% do carvão mundial. Entre eles, há grandes reservas de gás de xisto, algumas das quais são exploradas na Argentina, que já começa a mirar nas exportações de gás. O Brasil, a Venezuela e a Colômbia estão entre os principais exportadores de combustíveis fósseis da região.
Conforme a Agência Internacional de Energia (AIE), a produção de petróleo e gás na América Latina cresceu 5% em 2022 e espera-se outro aumento este ano. Isso ocorre apesar das enormes oportunidades para expandir a geração de energia solar e eólica — A AIE aponta a falta de financiamento como a principal barreira para a transição, o qual precisaria dobrar até 2030 para atender aos compromissos climáticos anunciados no acordo de Dubai.
Durante sua participação na COP28, o presidente colombiano Gustavo Petro destacou a urgência da transição ao se unir a um bloco que promove um “tratado de não-proliferação de combustíveis fósseis”. No entanto, ele explicou que, para avançar com o plano, seu país teria de buscar fontes alternativas de financiamento para compensar a perda das exportações petrolíferas.
“Já existem contratos de exploração por vários anos e outros de exploração já assinados. O que não queremos é que o setor se expanda ainda mais”, explicou Petro na cúpula. “Precisamos substituir os combustíveis fósseis por outros tipos de atividade. E o que encontramos no curto prazo é a diversidade natural da Colômbia: desde a região nevada até o Caribe, as florestas, o deserto e as grandes montanhas andinas”.
No outro extremo estava o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto há um ano, na COP27, Lula era recebido como uma celebridade após sua vitória contra Jair Bolsonaro, o contexto foi bem diferente em Dubai: lá, ele foi questionado sobre os planos do Brasil de expandir o uso de combustíveis fósseis, com a abertura de 600 licitações para novas áreas de exploração e o ingresso à Opep+ como membro observador — tudo isso com a conferência em andamento.
Para Peri Dias, representante da organização 350.org, o Brasil poderia ter sido a estrela da COP28, considerando o sucesso de Lula em reduzir as taxas de desmatamento na Amazônia em quase 50% desde que tomou posse em janeiro. Porém, a ambiguidade em suas posições sobre os combustíveis fósseis jogaram contra ele. “Aos olhos da comunidade internacional, o resultado [para o Brasil] foi um zero a zero ou, na melhor das hipóteses, uma vitória magra”, resume Dias.
Desafios para a transição
Um relatório apresentado na COP28 por uma coalizão de organizações ambientais e especialistas em energia concluiu que a maioria dos países latino-americanos precisará eliminar os combustíveis fósseis na próxima década para cumprir as metas do Acordo de Paris. O Brasil, por exemplo, teria que parar de usar petróleo até 2034 e gás natural até 2031; o México até 2037 e 2033, respectivamente.
Essa não é uma meta impossível: na última década, o investimento em energias renováveis na América Latina aumentou, em média, 10% ao ano, permitindo a expansão de cem gigawatts de capacidade eólica e solar em 2022, de acordo com o Zero Carbon Analytics. O grupo informa que há, atualmente, mais de 320 projetos eólicos e solares em andamento na região, dos quais cerca de 200 estão em fase de planejamento ou construção.
“O acordo na COP28 mostra que os combustíveis fósseis estão em vias de extinção. A América Latina tem muitas oportunidades de transformar seu setor de energia, com exemplos de países como o Chile e o Uruguai”, avalia Enrique Maurtua Konstantinidis, analista de política climática na Argentina. “O problema está no financiamento: somos os que menos recebem financiamento climático”.
O cumprimento das metas climáticas da América Latina vai exigir um investimento de 3,7% a 4,9% do PIB regional por ano até 2030, de acordo com um relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe apresentado na COP28. Em 2020, o financiamento climático na região foi de apenas 0,5% do PIB regional.
A América Latina tem muitas oportunidades de transformar seu setor de energia. O problema está no financiamento.Enrique Maurtua Konstantinidis, analista argentino de políticas climáticas
A próxima conferência climática da ONU será realizada em novembro de 2024 no Azerbaijão — país com dois terços do PIB gerados a partir dos royalties de petróleo e gás. Portanto, para o ano que vem, é provável que as discussões sobre a transição energética sigam atraindo os holofotes. Em seguida, será a vez da América Latina: o Brasil sediará a COP30, de 2025, em Belém do Pará.
“É como se o mundo fosse uma pessoa de meia-idade descobrindo que tem diabetes, colesterol e pressão alta, e o médico lhe dissesse que ela precisa mudar seus hábitos para melhorar sua qualidade de vida e prolongá-la”, descreve Manuel Jaramillo, diretor-geral da Fundação Vida Silvestre, parceira argentina da WWF. “Temos um diagnóstico, agora temos de tratar os sintomas”.
Esta reportagem foi produzida como parte da Climate Change Media Partnership, bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network, da Internews, e pelo Stanley Center for Peace and Security.