Negócios

Eleição presidencial pode redefinir política do lítio na Bolívia

Contratos com itens sigilosos seguem travados no Congresso boliviano, enquanto povos indígenas cobram respostas sobre impactos socioambientais
<p>Salar de Uyuni, no departamento de Potosí, Bolívia. Após anos de controle estatal sobre reservas de lítio, empresas estrangeiras agora buscam liderar a industrialização do mineral boliviano (Imagem: Ernst Udo Drawert / Dialogue Earth)</p>

Salar de Uyuni, no departamento de Potosí, Bolívia. Após anos de controle estatal sobre reservas de lítio, empresas estrangeiras agora buscam liderar a industrialização do mineral boliviano (Imagem: Ernst Udo Drawert / Dialogue Earth)

Na manhã de 20 de janeiro de 2023, o presidente boliviano Luis Arce declarou que havia começado a “era da industrialização” das enormes reservas de lítio no país. Diante da plateia na Casa Grande do Povo, sede do governo em La Paz, Arce fez a ousada afirmação de que, até o primeiro trimestre de 2025, seu país estaria exportando baterias de lítio feitas com matérias-primas locais.

A declaração de Arce ocorreu durante a assinatura do primeiro acordo entre a estatal Yacimientos de Lítio Bolivianos (YLB) e o consórcio chinês Hong Kong CBC — formado pela gigante de baterias CATL, sua subsidiária Brunp e a mineradora CMOC. Após tentativas frustradas de a Bolívia entrar no mercado internacional de lítio, o presidente afirmou que o país finalmente poderia exportar recursos naturais com valor agregado. “Não há tempo a perder”, repetiu diversas vezes.

Um comunicado do Ministério de Hidrocarbonetos do país afirmou que o acordo previa a implementação de dois complexos industriais baseados na tecnologia de extração direta de lítio. O método, apresentado como menos nocivo ao meio ambiente e com menor gasto de água, foi descrito como “uma solução viável, real e rapidamente implementável”, nas palavras do então ministro Franklin Molina. Cada empreendimento produziria “até 25 mil toneladas de carbonato de lítio por ano” nas salinas de Uyuni e Coipasa, segundo o governo.

Cinco meses depois, porém, a YLB veio a público explicar que os planos daquele dia eram apenas uma parceria para a realização de estudos — e não um contrato para já construir as usinas. Um grupo de parlamentares, liderado pela deputada da oposição María José Salazar, pediu ao governo Arce que levasse o documento à avaliação do Congresso. A Constituição da Bolívia confere ao Legislativo o poder de deliberar sobre contratos relacionados à exploração de recursos naturais.

Desde então, a Bolívia — que tem 23 milhões de toneladas em reservas de lítio, mineral crítico para a transição energética — assinou convênios e contratos com empresas de seis países, embora o conteúdo e o número exato desses acordos ainda sejam desconhecidos. 

Apenas com grupos chineses, estima-se que há quatro instrumentos legais para atuação no Salar de Uyuni. Um deles foi firmado com a Hong Kong CBC, que depois resultou em um contrato. Os demais foram firmados com empresas da Rússia (Uranium One Group, um contrato e um convênio), Austrália e Alemanha (Eau Lithium Pty Ltd), França (Geolith Actaris) e Argentina (Tecpetrol). Os três últimos foram assinados em dezembro passado. 

Esses documentos preveem a realização de estudos, testes, exploração e “aproveitamento de recursos evaporíticos” — expressão que a deputada Toribia Lero descreveu, em entrevista ao Dialogue Earth, como eufemismo para a extração de lítio.

A mineração de lítio é apontada como uma importante oportunidade para impulsionar a instável economia boliviana. Porém, à medida que cresce a pressão da indústria para explorar o mineral, vozes da política e sociedade civil também levantam preocupações com a falta de transparência sobre os acordos, incluindo o andamento de cada projeto e seus impactos socioambientais para as comunidades próximas.

Lítio na Bolívia: dúvidas e incertezas

Desde que assumiu o cargo em 2021, o presidente Arce abandonou a extração tradicional de lítio por evaporação, iniciada no governo de Evo Morales (2006-2019), para focar apenas na técnica de extração direta. A primeira licitação internacional foi lançada em 2021, e a segunda, em maio de 2024.

bacias vermelhas cobertas de salmoura em desertoo de sal
Teste de evaporação de lítio no Salar de Uyuni. O presidente boliviano Luis Arce abandonou a extração de lítio baseada na evaporação e abriu licitações para projetos de extração direta, com menor uso d’água (Imagem: Philippe Psaila / Science Photo Library / Alamy)

Vice-presidente na Câmara dos Deputados, Lero explicou que, após a primeira fase da licitação, as empresas selecionadas precisam assinar um acordo de confidencialidade antes de seguir para a etapa seguinte, quando apresentam seus projetos e podem inspecionar as áreas destinadas à exploração. Segundo ela, a partir da terceira fase, o processo se torna completamente opaco: “Não se sabe absolutamente nada”.

A deputada pediu ao Executivo informações sobre 24 documentos assinados entre a YLB e empresas estrangeiras — número que corresponde à lista de possíveis acordos, apresentada pela estatal após a segunda licitação. 

O pedido mais recente, feito em setembro de 2024, recebeu resposta somente em abril deste ano. No documento, a YLB alegou que o convênio com a Hong Kong CBC inclui uma cláusula de confidencialidade que abrange informações técnicas compartilhadas. Isso “torna impossível divulgá-lo”, disse a resposta de uma página à qual o Dialogue Earth teve acesso.

Quando começou a ser questionada a falta de transparência nos acordos, o então presidente da YLB, Carlos Ramos, disse que a confidencialidade era necessária para proteger as tecnologias de extração direta de lítio. Um ano depois, sua sucessora, Karla Calderón, disse à imprensa local que os convênios estavam nas fases iniciais dos projetos e que somente seriam enviados ao Congresso se virassem contratos.

Carlos Ramos, presidente da YLB, em uma coletiva de imprensa
Carlos Ramos, presidente da YLB, em uma coletiva de imprensa sobre os projetos-piloto para a extração direta de lítio nas salinas de Uyuni, Coipasa e Pastos Grandes, em junho de 2022 (Imagem: Radoslaw Czajkowski / dpa / Alamy)

Até o momento, dois acordos chegaram à fase de contrato e seguem parados no Legislativo desde o fim de 2024. Um deles – o do grupo russo Uranium One – foi parcialmente aprovado em 12 de agosto, cinco dias antes das eleições presidenciais e em meio a fortes disputas entre parlamentares. O outro contrato, com o Hong Kong CBC, ainda não foi analisado e não deve chegar a ser aprovado pela atual legislatura, que se encerra em 7 de novembro.

No primeiro turno das eleições gerais, em 17 de agosto, o partido governista Movimento ao Socialismo obteve apenas 3% dos votos. A disputa final será entre o senador Rodrigo Paz, de centro-direita, e o ex-presidente Jorge Quiroga, de direita, em 19 de outubro.

Enigmas do lítio boliviano

Uma fonte da YLB, que pediu anonimato por medo de represálias, disse ao Dialogue Earth que, na primeira licitação para empresas estrangeiras em 2021, a estatal de lítio disponibilizou algumas informações à sociedade, como quadros comparativos sobre o uso de energia e de água entre as empresas concorrentes. “Para a segunda licitação, tudo foi feito a portas fechadas”, afirmou.

O argumento da empresa estatal para não fornecer informações se baseia na Lei nº 928 de 2017, que lhe concede “autonomia técnica, administrativa, jurídica e financeira”. No entanto, essa lei não isenta o Ministério de Hidrocarbonetos e à Controladoria Geral, órgão de supervisão do Estado. “O direito de acesso à informação faz parte do marco constitucional. E tratados internacionais como o Acordo de Escazú têm status constitucional na Bolívia”, disse José Pablo Solón, pesquisador da Fundação Solón, referindo-se ao tratado latino-americano que consagra o direito de acesso à informação em pautas ambientais, ratificado pela Bolívia em 2019.

Nem mesmo os dois contratos que chegaram ao Legislativo eram conhecidos em sua totalidade. Várias fontes consultadas pela reportagem concordam que havia mais de uma versão de contrato em circulação. As mais completas têm 145 páginas (Uranium One) e 250 páginas (CBC). Esses detalhes e outras preocupações provocaram uma série de protestos, principalmente de comunidades indígenas de Nor Lípez, em Potosí – território potencialmente afetado pelas operações do Uranium One Group e do consórcio CBC, de acordo com os documentos.

Em maio, representantes dessas comunidades entraram com uma ação em um tribunal local — esse mecanismo constitucional busca proteger direitos coletivos, como ao meio ambiente, à saúde e a serviços essenciais. Inicialmente, o juiz Edson Villarroel Herrera ordenou a suspensão do processo relativo aos contratos e de qualquer execução de obra até que fossem realizados estudos socioambientais e garantido aos grupos o direito à consulta livre, prévia e informada. No entanto, poucos dias depois, a medida cautelar foi suspensa em resposta a apelações do governo.

Agricultora colhe quinoa em Aguaquiza, comunidade próxima ao Salar de Uyuni
Agricultora colhe quinoa em Aguaquiza, comunidade próxima ao Salar de Uyuni, Bolívia. Comunidades indígenas temem que a extração de lítio esgote os já escassos recursos hídricos na região (Imagem: Ernst Udo Drawert / Dialogue Earth)

“O documento apresentado pela comunidade mostra evidências de que não apenas não houve consulta prévia e informada, mas que as zonas úmidas já secaram”, disse Fátima Monasterio, advogada dos autores da ação, referindo-se às lagoas salgadas que compõem um ecossistema de zonas úmidas em Nor Lípez. 

Como o Dialogue Earth já havia contado em 2023, as comunidades temem que a extração de lítio esgote as fontes hídricas já sobrecarregadas, mesmo com as novas técnicas de extração que prometem consumir menos água.

Contrato com a Uranium One

Enquanto isso, outra batalha avança na Assembleia Legislativa da Bolívia desde o final de 2024, quando os contratos começaram a chegar para a apreciação dos parlamentares.

Após várias tentativas frustradas de debate — que incluíram protestos, discussões tensas e até mesmo confrontos físicos —, o contrato do Grupo Uranium One foi parcialmente aprovado em agosto. No entanto, dias depois, um juiz decidiu que a questão não deveria ser discutida até que uma avaliação de impacto ambiental e uma consulta prévia com as comunidades indígenas da área fossem realizadas.

O contrato estabelece o compromisso de “desenvolver, construir, implementar e instalar uma usina”, que deverá produzir 14 mil toneladas de carbonato de lítio por ano nas salinas de Uyuni usando a tecnologia de extração direta. O investimento estimado é de US$ 975 milhões.

Imagem de satélite do Salar de Uyuni, na Bolívia
Imagem de satélite do Salar de Uyuni, na Bolívia. A empresa russa Uranium One planeja produzir 14 mil toneladas de carbonato de lítio por ano usando a tecnologia de extração direta (Imagem de satélite: Landsat / Copernicus via Google Earth)

O economista Fernando Patzy, especialista boliviano em governança de recursos naturais e na indústria do lítio, observou que o contrato não detalha como a YLB pagará o investimento da Uranium One. Ele ressaltou que, embora o documento mencione que o pagamento será feito em produto — na forma de carbonato de lítio —, não especifica quantidade, qualidade nem prazos, o que, segundo ele, “torna impossível avaliar a viabilidade do negócio”.

José Pablo Solón, autor de um livro que analisa os mitos e contradições do projeto de industrialização do lítio no Salar de Uyuni, argumentou que o contrato apresenta informações genéricas e carece de especificações essenciais.

Outra questão levantada por analistas é o alto consumo de água doce, mesmo com o método de extração direta. O documento estima que a produção vá consumir mais de 1,18 bilhão de litros de água doce de uma bacia que se estende pelo território indígena Nor Lípez — o equivalente ao consumo anual de 32 mil pessoas na cidade de La Paz.

“Há informações sobre os volumes de salmoura e água necessários para a operação, que parecem muito grandes, sobretudo de água doce. Isso é estranho, porque, teoricamente, a extração direta de lítio está sendo escolhida para preservar a água”, comentou Patzy.

Com base na documentação, Patzy destacou que os investimentos e despesas operacionais do projeto seriam cobertos pela receita gerada com a venda do lítio. De acordo com a YLB, a receita anual desse negócio será de US$ 315 milhões.

“Isso significaria que o preço internacional por tonelada de carbonato de lítio seria de aproximadamente US$ 30 mil”, disse Solón. No final de 2022, os valores dispararam a US$ 80 mil por tonelada, mas voltaram a cair para os US$ 10 mil atuais. “Ou alguém tem uma fórmula secreta para triplicar o valor de mercado ou o cálculo é excessivamente otimista”, acrescentou.

Contrato com a CBC

O segundo contrato é com o consórcio chinês Hong Kong CBC, que inclui a CATL, maior fabricante mundial de baterias de lítio para a eletromobilidade. O acordo é resultado de duas licitações conduzidas pela YLB, em 2021 e 2024, das quais o consórcio participou em ambas.

Quando em plena operação, as unidades deverão produzir, segundo a empresa, dez mil e 25 mil toneladas anuais de carbonato de lítio, cada uma. O investimento total previsto é de US$ 1,03 bilhão.

Em sua análise dos documentos, os especialistas consultados pelo Dialogue Earth observaram “imprecisões” e “cláusulas estranhas”. Além disso, dizem que o contrato menciona seções inexistentes, como o anexo “8.2 Fontes de água”. Também, como no caso do Uranium One Group, citam valores que não correspondem aos do mercado.

Em relação à consulta prévia, o vice-ministro de Energias Alternativas, Álvaro Arnez, afirmou que ela ocorrerá após a aprovação dos contratos. A documentação apresentada aos membros da Assembleia Legislativa indica que as fontes de água potencialmente afetadas estão nas terras dos Nor Lípez, nas bacias de Cieneguillas e San Gerónimo.

Temor nas comunidades

Na noite de 19 de janeiro de 2023, os principais líderes indígenas de Nor Lípez receberam uma mensagem de texto incomum: um convite do gabinete presidencial para participar do lançamento oficial da “industrialização do lítio boliviano”. O evento seria no dia seguinte na Casa Grande del Pueblo, em La Paz — a mais de 680 quilômetros de distância. 

“Não tivemos tempo de nos mobilizar, foi assim que descobrimos o que estava acontecendo”, disse Néstor Ticona, ex-líder de Nor Lípez, ao Dialogue Earth em 2023. “Se não fosse por isso, nem teríamos sabido. O convite era para as oito da manhã. Como poderíamos chegar lá?”.

Desde então, essas comunidades vêm resistindo ao avanço de um processo sobre o qual afirmam não terem sido consultadas. Elas temem perder suas plantações de quinoa e a criação de camelídeos — como lhamas e alpacas — que garantem sua subsistência.

Lhamas perto do Salar de Uyuni, em Potosí
Lhamas perto do Salar de Uyuni, em Potosí. A criação de camelídeos é essencial para a economia de comunidades do entorno, que temem impactos da exploração de lítio na atividade (Imagem: Ernst Udo Drawert / Dialogue Earth)

Vários moradores estão na expectativa de serem empregados nos projetos de lítio. Mas eles esperam que sejam dadas explicações, em sua língua nativa, sobre o impacto na água e no destino de resíduos. 

O pesquisador Gonzalo Mondaca, do Centro de Documentação e Informação Boliviano, disse ao Dialogue Earth que a questão vai além das preocupações ambientais e econômicas, trazendo ainda implicações culturais.

É o caso do Salar de Coipasa, lar da nação indígena Quillacas, visado para exploração pelo Estado boliviano. “Em uma reunião na prefeitura, eles foram muito enfáticos em rejeitar os contratos”, disse Mondaca, que percorreu várias vezes a região. 

“Para nós, a água é o sangue que corre pelo corpo da Pachamama. E as salinas são o leite derramado de uma mãe que perdeu seu filho”, disse a deputada Toribia Lero,  indígena do povo Sura.

Para nós, a água é o sangue que corre pelo corpo da Pachamama. E as salinas são o leite derramado de uma mãe que perdeu seu filho
Toribia Lero, deputada indígena do povo Sura

A percepção entre jovens do setor, como Wilson Caral, engenheiro ambiental que trabalhou na YLB e se especializou em lítio na Argentina, é diferente. Ele defende que decisões sejam tomadas em nível nacional, mas com a colaboração de empresas estrangeiras. Caral reconhece que qualquer mineração traz impactos ambientais, mas acredita ser possível reduzi-los com tecnologia e planejamento. Segundo ele, a falta de oportunidades econômicas é um dos motivos que leva muitos moradores a deixar a região.

“Podemos fazer o melhor uso dos recursos e causar menos impacto no Salar de Uyuni e no meio ambiente”, insistiu Caral.

Ainda assim, o cenário pode mudar nas próximas semanas. Os dois candidatos que disputarão o segundo turno presidencial em 19 de outubro, Paz e Quiroga, afirmaram que não pretendem aprovar os contratos que seguem travados no Congresso.

Ainda assim, Quiroga propôs transformar o Triângulo do Lítio — formado por Bolívia, Argentina e Chile — em uma “potência”. “Devemos nos abrir ao investimento, exportar lítio e criar zonas de livre comércio para produzir baterias no Cone Sul”, afirmou em agosto. Por sua vez, Paz propôs um plano de investimento internacional que inclua o lítio como “um dos instrumentos para o desenvolvimento de Potosí e do país”.

Litio em Conflito é um projeto liderado pelo Centro Latino-Americano de Investigação Jornalística (CLIP) em parceria com Consenso (Paraguai), La Región (Bolívia), Quinto Elemento Lab (México), Repórter Brasil (Brasil), Ruido (Argentina), Climate Tracker LatamDialogue EarthMongabay Latam e Columbia Journalism Investigations (CJI), sobre o funcionamento da indústria do lítio na América Latina. Com o apoio da equipe jurídica El Veinte.

Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.

Strictly Necessary Cookies

Strictly Necessary Cookie should be enabled at all times so that we can save your preferences for cookie settings.

Analytics

This website uses Google Analytics to collect anonymous information such as the number of visitors to the site, and the most popular pages.

Keeping this cookie enabled helps us to improve our website.

Marketing

This website uses the following additional cookies:

(List the cookies that you are using on the website here.)