<p>Cuspidor de fogo faz performance em evento da ExxonMobil em shopping de Georgetown, capital da Guiana (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)</p>
Natureza

ExxonMobil consolida ‘petroestado’ na Guiana em meio a tensões ambientais

Boom do petróleo na Guiana, impulsionado pela grande petrolífera dos EUA, não trouxe só dinheiro — também aumentou a desigualdade, enfraqueceu a fiscalização ambiental e aumentou a influência estrangeira sobre o país

Em Georgetown, capital da Guiana, o rangido dos caminhões pesados carregando materiais para obras faraônicas ecoa incessantemente por toda a cidade. Uma nova ponte sobre o rio Demerara, uma ilha artificial, prédios modernos e hotéis luxuosos se erguem como símbolos da riqueza prometida pela indústria petrolífera. Estrangeiros de empresas recém-estabelecidas ali já a apelidam de “nova Dubai”.

A ExxonMobil, petroleira norte-americana, domina a produção de petróleo na Guiana por meio de sua subsidiária, Esso, que lidera o consórcio do bloco petrolífero Stabroek ao lado da também norte-americana Hess e da chinesa CNOOC. Desde a grande descoberta em 2015, a atividade cresceu rapidamente: hoje, a empresa extrai cerca de 650 mil barris diários e pode dobrar a produção até 2027. Porém, enquanto expande sua presença no país, a ExxonMobil enfrenta acusações de ambientalistas e ações na Justiça.

“Nossas instituições foram capturadas pelos interesses estrangeiros. A Exxon não é a única, mas com certeza é a mais flagrante”, disse a ambientalista Sherlina Nageer, fundadora do Greenheart Movement, iniciativa que defende alternativas ao setor, e uma das principais vozes contrárias à exploração do petróleo na Guiana. 

O país se consolida como um “petroestado”, onde a economia, as decisões políticas e as instituições são cada vez mais atreladas à indústria petrolífera. E fica cada vez mais difícil saber onde termina o Estado e começa a ExxonMobil.

Ilha artificial construída pela ExxonMobil na foz do rio Demerara em Georgetown, Guiana
Ilha artificial construída pela ExxonMobil na foz do rio Demerara em Georgetown, Guiana, para abrigar um porto petrolífero (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)
Trabalhador caminha por rua de chão batido em Georgetown
Trabalhador caminha por rua de chão batido em Georgetown, Guiana (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Gas Flaring irregular na Guiana

Entre as práticas da ExxonMobil questionadas por ambientalistas e pela Justiça está o gas flaring – a queima de gás natural derivado da extração de petróleo, liberando dióxido de carbono (CO₂) e metano na atmosfera. Quando entrou em operação em 2019, o campo Liza Fase 1 — um dos três ativos no país — tinha uma licença ambiental que proibia o flaring, exceto em casos de manutenção ou emergência.

No entanto, entre 2019 e 2023, a petroleira registrou 1.298 episódios de queima de gás, segundo a análise do projeto jornalístico Até a Última Gota, que se baseou em dados de satélite da plataforma SkyTruth e teve a consultoria científica do Instituto Internacional Arayara, organização dedicada à defesa dos direitos ambientais. A reportagem também revelou que, entre 2019 e 2023, a ExxonMobil queimou 687 milhões de metros cúbicos de gás na costa da Guiana, liberando 1,32 milhão de toneladas de CO₂ na atmosfera. Esse volume equivale às emissões de quase 287 mil carros em circulação por um ano e posiciona a Guiana como o segundo maior emissor de gases de efeito estufa por flaring na Amazônia, atrás apenas do Equador.

Sherlina Nageer é uma das ativistas que disse ter reunido provas da conduta ilegal da empresa por meio imagens de satélite. Em abril de 2021, ela e outras duas colegas notificaram a Agência de Proteção Ambiental da Guiana (EPA, na sigla em inglês), órgão responsável pelo licenciamento e fiscalização do setor petrolífero no país.

Mas apenas um mês após a denúncia, a EPA revisou a licença ambiental da petroleira, ampliando o prazo permitido para a queima de gás, que passou de três para até 60 dias consecutivos — mudança bastante criticada pela falta de transparência. A nova licença também incluiu a cobrança de US$ 45 por cada tonelada de CO2 emitida no processo.

Sherlina Nageer, mulher de cabelos cinzas, camiseta branca, bolsa cruzada e pele morena, na frente de uma grande árvore
Sherlina Nageer é uma das vozes contrárias à exploração de combustíveis fósseis na Guiana. ‘Nossas instituições foram capturadas por interesses estrangeiros’, disse ela (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

“Agora o governo está basicamente dizendo: ‘polua o quanto quiser, desde que possa pagar por isso’”, disse Vincent Adams, ex-diretor da EPA e especialista em petróleo e gás com mais de 30 anos de experiência no Departamento de Energia dos EUA.

Quando assumiu a agência guianense, Adams conta que se deparou com uma instituição despreparada para lidar com a indústria petrolífera: “Não havia sequer um engenheiro treinado em petróleo”. Ele lembra que o órgão funcionava como mero “carimbador” das solicitações da ExxonMobil e de suas empresas parceiras.

Em 2020, quando a Esso buscou licenciar o campo de Payara, o terceiro no país, Adams afirma ter exigido garantias financeiras para a compensação de acidentes ambientais. Segundo o especialista, os estudos ambientais apresentados para o licenciamento dos três projetos eram praticamente idênticos e indicavam que um vazamento de óleo na região poderia se espalhar pela costa da Venezuela e outros países do Caribe.

Adams deixou a agência em agosto de 2020, com a troca de governo na Guiana, e lembra que, apenas um mês depois, as licenças foram concedidas. “Quando eu saí, eles tomaram conta”, afirmou o engenheiro, que desde então se tornou um dos principais críticos do atual modelo de exploração de petróleo no país.

Contrato desfavorável à Guiana

As controvérsias em torno à exploração de petróleo na Guiana são antigas. Após a ExxonMobil descobrir a primeira reserva no país em 2015, o governo precisou definir do zero os termos de um contrato de partilha para o bloco Stabroek. O contrato estabelece que até 75% da receita bruta mensal gerada pela extração do bloco seja destinada ao pagamento dos custos de desenvolvimento e operação das empresas. O restante é dividido igualmente entre o governo guianense e o consórcio, resultando em uma participação de 12,5% para a Guiana. O acordo ainda prevê royalties de apenas 2% sobre o valor do petróleo vendido, percentual inferior ao praticado em países como o Brasil (cerca de 15%) e os Estados Unidos (mais de 16%).

“É um contrato muito ruim, que nos priva de muitos recursos”, afirmou Donald Ramotar, ex-presidente da Guiana. Durante sua gestão entre 2011 e 2015, a ExxonMobil fez pesquisas na costa do país que levaram à primeira grande descoberta.

Embora seja correligionário do atual presidente Irfaan Ali, ele defende a revisão das cláusulas do contrato. Ali, por sua vez, admite que o acordo é desfavorável, mas argumenta que a “santidade do contrato” deve ser respeitada.

Workers handling concrete blocks and cement
Trabalhadores constroem piso de concreto em estabelecimento portuário em Georgetown, Guiana (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Outro forte opositor do contrato é Frederick Collins, presidente do Instituto de Transparência da Guiana, quem classificou o acordo como “fortemente favorável à Exxon”. Sua organização anticorrupção publicou uma série de críticas nos jornais do país e levou o caso à Justiça diante da falta de garantias financeiras para possíveis vazamentos de óleo — e venceu. Em maio de 2023, a Suprema Corte da Guiana concluiu que a EPA agiu com “complacência e submissão, colocando a nação e seu povo em grave perigo de um desastre calamitoso”.

A Esso e o governo da Guiana recorreram da decisão, estimando em US$ 2 bilhões o valor necessário para cobrir possíveis danos ambientais da atividade. Em junho do mesmo ano, um tribunal recursal acatou o argumento e suspendeu a decisão anterior.

Collins considerou o valor irrisório para remediar impactos do petróleo. Ele lembrou o vazamento no Golfo do México, em 2010, que levou a petroleira britânica BP e suas seguradoras a desembolsarem US$ 69 bilhões em reparações.

A InfoAmazonia tentou contato diversas vezes com a ExxonMobil, sua subsidiária Esso, bem como com a Hess, a CNOOC e o governo da Guiana. Não houve resposta até o momento da publicação.

Comunidades estão apreensivas

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Pescador na comunidade de Hope Beach. O local parece um cemitério de embarcações, abandonadas frente à queda da oferta de peixes após o início das atividades de exploração de petróleo no país (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Moradores de comunidades costeiras e indígenas no entorno de Georgetown estão divididos e apreensivos sobre o avanço da indústria petrolífera no país. Na praia de Hope Beach, a 25 km da capital, um verdadeiro cemitério de embarcações expõe o declínio da pesca. “Eram barcos usados na pesca, mas o pessoal colocou tudo à venda, e ninguém quis comprar”, disse o pescador Amran Samad.

A extração de petróleo trouxe uma série de desafios à atividade, segundo os locais. Eles citam que o intenso tráfego de navios e a vibração causada pelas operações offshore (em alto mar) afastam os cardumes, enquanto a entrada massiva de peixe importado com a chegada de mais estrangeiros, oferecido a preços muito baixos, intensificou a concorrência desleal e reduziu a demanda pelo pescado local.

Na comunidade indígena de St. Denny’s, a cerca de 100 km de Georgetown, a conselheira Donnet Frederick mostrou uma estufa de hortaliças construída com recursos da venda de créditos de carbono.

“Nossa comunidade recebeu 80 milhões de dólares guianenses [R$ 2 milhões] dos projetos de créditos de carbono. Essa verba foi usada para criar uma granja, construir uma estufa e renovar nossa produção”, disse.

Em dezembro de 2022, o governo da Guiana firmou um acordo com a Hess Corporation, integrante do consórcio liderado pela ExxonMobil, para a venda de 37,5 milhões de créditos de carbono ao longo de uma década. O projeto abrange todas as florestas do país, cobrindo quase 90% do território nacional e os lares de muitas comunidades indígenas.

Não se pode simplesmente despejar dinheiro nas comunidades sem considerar os impactos culturais e ambientais
Trevon Baird, professor da Universidade da Guiana

Até 2032, a Hess deve pagar um total de US$ 750 milhões ao governo da Guiana, com a promessa de que 15% desse valor seja destinado exclusivamente aos povos tradicionais. Mas o líder indígena Mario Hastings alega que as comunidades foram seduzidas pelas promessas financeiras e não foram devidamente consultadas sobre o projeto.

Hastings foi por vários anos cacique (toshao) da aldeia Kako, na região de Essequibo, que esteve envolvida em uma recente disputa territorial com a Venezuela. Ele contou que, em 2022, quando ainda estava no cargo, participou de uma reunião do Conselho de Toshaos na capital, onde a proposta do projeto de carbono foi levantada.

“Recebemos um calhamaço de páginas em inglês, com linguagem muito técnica, e pediram que déssemos uma resposta imediata”, disse Hastings. As comunidades indígenas da Guiana não têm o inglês como primeira língua, utilizando seus idiomas nativos no dia a dia. “Não pudemos retornar ao nosso povo para mostrar a proposta. Eu disse não, disse que não poderia fazer isso com meu povo”, lembra. No fim, Hastings foi voto vencido pelo conselho.

Em 2024, Associação dos Povos Ameríndios (APA) e outras organizações publicaram um relatório denunciando as violações do projeto de créditos de carbono. O documento destaca que o processo de certificação “violou as salvaguardas” dos povos indígenas ao conceder todas as florestas do país ao programa.

mapa de blocos petrolíferos da Guiana
(Fonte de dados: Arayara, RAISG via InfoAmazonia / Mapa: Dialogue Earth)

O projeto Até a Última Gota também identificou que, além da produção offshore, há áreas reservadas para a exploração em terra que estão sobrepostas a 13 terras indígenas e uma unidade de conservação na Guiana.

Trevon Baird, professor da Universidade da Guiana, questiona a noção de “progresso” baseada em créditos de carbono. “Não se pode simplesmente despejar dinheiro nas comunidades sem considerar os impactos culturais e ambientais”, afirma o antropólogo.

Da colônia ao petróleo: exploração estrangeira

Após 467 anos de colonização europeia e 26 de ditadura, a Guiana permaneceu pobre e dependente da agricultura, mesmo com a redemocratização em 1992. A busca por petróleo na costa guianense seguiu a mesma lógica exploratória. As petroleiras estrangeiras perfuraram mais de 40 poços secos até a descoberta da ExxonMobil em 2015, logo após as eleições presidenciais daquele ano.

A ExxonMobil quase desistiu, relegando o país a segundo plano por alguns anos. A Shell, que detinha metade do bloco Stabroek, abandonou o projeto em 2014, pouco antes da perfuração decisiva. Desde então, já foram feitas mais de 30 descobertas, com um volume de petróleo estimado em 11 bilhões de barris, avaliados em US$ 1 trilhão.

Embora o PIB da Guiana tenha crescido 65% em 2022 devido ao setor, a pobreza segue alta no país. Em 2022, o Conselho Econômico da ONU apontou que 43% da população vivia com menos de US$ 5,5 diários por pessoa – abaixo da linha da pobreza. O índice de desemprego de 14% é um dos mais altos da América Latina. Já as grandes obras de infraestrutura, como a ponte sobre o rio Demerara e os modernos prédios no centro de Georgetown, são tocadas por empresas chinesas que contratam, principalmente, trabalhadores asiáticos.

Trabalhadores chineses são transportadas na caçamba de um triciclo motorizado na Guiana
Trabalhadores chineses encerram expediente no canteiro de obras da nova ponte sobre o rio Demerara, em Georgetown (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Com a descoberta de petróleo, a ExxonMobil passou a investir pesado em publicidade para moldar sua imagem no país. No estacionamento de um shopping no centro de Georgetown, um comediante anunciava que a petroleira distribuiria 100 mil dólares guianenses (cerca de R$ 2,8 mil) para cada cidadão adulto do país — menos de dois salários mínimos na Guiana.

“Eu quero uma salva de palmas para a Exxon porque ela está transformando esse país. Por isso, teremos 100 mil no bolso de cada um de vocês”, disse ele em um evento que a reportagem presenciou em novembro de 2024.

Na verdade, o depósito foi feito pelo governo da Guian. Era o primeiro repasse de recursos direto à população desde o início das operações da Esso no país, mais de cinco anos antes, e o último planejado até então.

As quedas de energia são constantes em Georgetown. Apesar das grandes reservas, a maior parte do petróleo extraído na Guiana vai para os Estados Unidos e países da Europa. “Nós já estamos acostumados com as quedas de energia, só que com o passar dos anos elas estão ficando mais frequentes”, disse a moradora Minerva Cort.

Jovem acende vela durante apagão em sua casa no bairro Campbellville, em Georgetown
Jamala, filha de Minerva Cort, acende vela durante apagão em sua casa no bairro Campbellville, em Georgetown (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)
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Homem caminha pelo lixão municipal de Georgetown, capital da Guiana (Imagem: Victor Moriyama / InfoAmazonia)

Com o dinheiro do petróleo, a Guina está planejando a construção da Silica City — metrópole futurista a 40 km de Georgetown. Ainda há poucos detalhes sobre a obra, mas o presidente Ali prometeu que será uma cidade resiliente, sustentável, moderna e inovadora — um lugar, nas palavras dele, “à frente de seu tempo”.

O futuro grandioso vendido pelo governo guianense contrasta com a realidade diária de grande parte da população. Mais de 90% dos habitantes do país continuam vivendo abaixo do nível do mar. As canaletas que cortam Georgetown, projetadas para controlar os efeitos das marés na cidade, estão entupidas de esgoto e repletas de embalagens de fast food e refrigerante. A água encanada apresenta altos índices de contaminação.

Por enquanto, o lugar mais alto da cidade segue sendo a pilha de lixo que cresce incessantemente no aterro sanitário. Do alto da montanha de dejetos, é possível ter uma vista privilegiada do futuro que nunca chega.

Esta reportagem foi publicada originalmente no InfoAmazonia e foi editada sob autorização. A investigação faz parte do especial Até a Última Gota, produzido com o apoio da Global Commons Alliance, um projeto patrocinado pela Rockefeller Philanthropy Advisors. Foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o suporte do Instituto Serrapilheira.

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