Desde a Cúpula da Terra, realizada no Rio de Janeiro em 1992 para promover o desenvolvimento sustentável no pós-Guerra Fria, o Brasil e a China têm participado ativamente das discussões ambientais internacionais — e cooperado com as três convenções-quadro da ONU sobre mudanças climáticas, biodiversidade e desertificação.
Nas décadas subsequentes, o Brasil manteve uma imagem ambiental positiva no cenário internacional devido à sua rica biodiversidade — apesar da perda de 8,6% de florestas nativas nos últimos 20 anos — e sua matriz energética relativamente limpa, com mais de 60% da eletricidade gerada por hidrelétricas. Mas esse não é o caso da China: a nação é vista como uma grande poluidora, que buscou o crescimento econômico a todo custo por décadas e negligenciou a preservação do meio ambiente e os compromissos globais de redução de emissões. Com o crescimento de uma economia brasileira voltada para a exportação, o desmatamento na Amazônia e no Cerrado foi minimizado como um sacrifício necessário para o desenvolvimento nacional — mesmo antes de governos conservadores como os de Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-2022) assumirem o poder. A China, por sua vez, respondeu ao aquecimento global e às pressões externas com políticas de reflorestamento massivo e reformas institucionais que colocaram os problemas ambientais como uma questão central de ordem política e cultural.
Atualmente, a China busca uma transformação interna para “construir uma civilização ecológica”, uma das principais aspirações do presidente Xi Jinping. O conceito filosófico, extraído dos ideais soviéticos, foi adotado pela liderança do Partido Comunista da China em 2006, mesmo ano em que o país se tornou a maior fonte global de CO2, ultrapassando seis bilhões de toneladas de emissões anuais.
A ideia subjacente à civilização ecológica como paradigma de desenvolvimento é que, para alcançar esse desenvolvimento socialista em harmonia com a natureza, o modo atual de civilização industrial precisa ser superado, em uma ruptura semelhante à que ocorreu com a civilização agrícola. Para orientar as políticas correspondentes, seis princípios centrais foram incluídos na Constituição chinesa em 2018 — o último deles marca o compromisso da China com a construção de uma ‘civilização ecológica global’, apontando para a necessidade de mudanças para além de suas fronteiras.
Enquanto as atividades da China no exterior começam lentamente a responder a essas ideias, o significado da civilização ecológica para a América Latina ainda é pouco explorado na literatura acadêmica.
Em um capítulo de livro publicado recentemente, eu e meus colegas Jefferson Santos e Talitta Pinotti apresentamos algumas ideias sobre o futuro papel da civilização ecológica para o investimento e o comércio entre o Brasil e a China. Entendemos que a China pode aumentar sua influência na agenda ambiental global por meio de suas relações comerciais, implementando fortes políticas ambientais além da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês) — seu programa de desenvolvimento de infraestrutura no exterior, do qual o Brasil ainda não faz parte.
Essas políticas ambientais poderiam ser mais próximas daquelas que a China já implementa internamente, e o Brasil poderia ser um ponto de partida relevante para essas iniciativas no exterior. Assim, os investimentos diretos da China em outros países não colaborariam com o desmonte de leis ambientais e a criação de “paraísos poluidores”.
Nosso capítulo faz parte do livro How China is Transforming Brazil (“Como a China está transformando o Brasil”, sem edição em português), editado após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, e oferece uma visão geral das múltiplas faces dessa relação em transformação — passando por temas como cultura, infraestrutura e meio ambiente.
Na esfera ambiental, muita coisa já mudou em 2023. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o compromisso de acabar com o desmatamento na Amazônia até 2030, mas também gerou controvérsias pela postura do governo em relação à preservação dos direitos indígenas — mostrando a força do lobby do agronegócio brasileiro, contrário a muitos planos ambientais de Lula. Enquanto marco ambiental, o conceito da civilização ecológica da China poderia ser mais bem aproveitado pelos líderes latino-americanos para promover mudanças estruturais nas políticas ambientais da região.
O Brasil deve fazer bem mais do que combater o desmatamento ilegal. Em resposta às ideias de proteção da biodiversidade e mitigação de impactos apresentadas no 14º Plano Quinquenal da China, o Brasil poderia almejar uma descarbonização muito mais radical em sua economia e mirar indicadores socioeconômicos que vão além do PIB, como saúde, meio ambiente, desigualdade e emprego.
Essa mudança dependerá não só do apoio do governo Lula, mas também do convencimento dos representantes conservadores no Congresso brasileiro. Será necessária toda a habilidade retórica de Lula para evidenciar a urgência de redefinir o relacionamento entre a China e o Brasil. É preciso romper com as tradições extrativistas impulsionadas até agora para evitar uma relação neocolonial com a nação asiática. As ideias progressistas terão de se reinventar para encontrar convergências entre os novos projetos verdes promovidos pela BRI, os interesses dos investidores chineses e a estratégia de reindustrialização do Brasil.
Relacionamento em transformação
Há 30 anos, quando a China e o Brasil estabeleceram sua parceria estratégica, o mundo viu uma abertura sem precedentes para a cooperação multilateral após o fim da Guerra Fria. Em 2004, foi fundada a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), proporcionando um espaço único para a colaboração entre as duas economias emergentes. Posteriormente, essa relação foi formalizada como uma “parceria estratégica global” e, na esteira da crise financeira de 2007-2008, outro fórum envolvendo as duas nações ganhou relevância: o bloco dos Brics, do qual também fazem parte Rússia, Índia e África do Sul.
A cooperação entre os dois países mudou significativamente desde a década de 1990. O PIB da China se recuperou rapidamente e se tornou a segunda maior economia do mundo em 2010, enquanto o Brasil estagnou na 10ª posição na década de 2010. Enquanto os Estados Unidos e a União Europeia (UE) começaram a ver a China como uma rival da ordem global dominada pelo Ocidente, a periferia do mundo viu a potência emergente como um parceiro comercial promissor: além de trazer à mesa opções com menos restrições, a postura da China de não-intervenção em assuntos internos também foi bem-sucedida.
Inicialmente voltada para o comércio, a relação sino-brasileira se diversificou significativamente desde então. Os interesses compartilhados incluem não só o desenvolvimento social, a redução da pobreza, a inovação tecnológica, a aposta na diplomacia e o apoio às negociações de paz na Ucrânia, mas também o combate às mudanças climáticas — objeto de uma recente declaração conjunta.
Os setores de energia, mineração, petróleo e agricultura ainda são dominantes nos negócios bilaterais, mas a imagem que um país tem do outro não é mais a mesma. Os investimentos chineses no Brasil atingiram o nível mais baixo em 13 anos no ano passado, em meio a atrasos regulatórios, impactos da guerra na Ucrânia e a priorização de investimentos chineses nos países da BRI. Mesmo assim, há projetos de ferrovias planejadas ou implementadas com o apoio da China em regiões ambientalmente sensíveis da Amazônia e do Cerrado. As obras foram facilitadas pela flexibilização ambiental durante o governo Bolsonaro.
As crescentes promessas para deter o desmatamento certamente abordam uma dimensão importante do problema, mas elas não vão longe o suficiente. Durante a tão esperada visita do presidente Lula à China em abril deste ano, a parceria estratégica entre os dois países foi reforçada, anunciando o início de uma nova era. No comunicado conjunto, a cooperação em áreas como economia digital e redução da pobreza foi colocada ao lado da proteção ambiental, das mudanças climáticas e da conservação da biodiversidade. Esses temas também aparecem na agenda do Brasil junto à União Europeia e aos Estados Unidos, mas tensões recentes envolvendo as negociações do acordo Mercosul-UE levaram Lula a declarar que o Brasil não aceitará o “neocolonialismo verde”.
Em meio ao aumento evidente de eventos climáticos extremos, a China poderia ajudar a escrever um novo capítulo com o Brasil e outros países do Sul Global. Os dois países enfatizam a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos na aceleração das mudanças climáticas e a falta de financiamento climático para que as nações em desenvolvimento cumpram as metas do Acordo de Paris. As novas políticas chinesas alinhadas aos objetivos da civilização ecológica, como mercados de carbono, certificações de sustentabilidade e demarcação de áreas protegidas, podem oferecer melhores práticas para combinar ação climática e conservação da natureza. Além disso, elas oferecem possibilidades de cooperação entre a China e o Brasil, conforme apontado em uma recente publicação da National Science Review.
Embora o Brasil não faça parte da BRI — sobretudo pela sua tradição diplomática de preferir alternativas multilaterais — é o maior parceiro comercial da China na região, e as ideias e implicações da civilização ecológica certamente influenciarão as políticas ambientais chinesas em solo latino-americano.
Com a Cosban, o Brasil já tem um espaço estratégico para manter diálogos institucionais sobre o meio ambiente com a China. Embora as representações ligadas à pauta ambiental não tenham se reunido durante o governo Bolsonaro, a recente declaração conjunta estabeleceu uma nova subcomissão dedicada ao meio ambiente e às mudanças climáticas, facilitando o avanço dessa agenda bilateral.
Próximas etapas para Brasil e China
Apesar das novas políticas da China para diminuir a dependência das importações de soja, especialmente da América do Sul, o comércio de commodities entre os dois países não deve acabar tão cedo. A ideia da civilização ecológica da China é um compromisso com uma mudança civilizatória em nosso relacionamento com a natureza. Mas as transformações que ela propõe ainda parecem bastante limitadas ao seu território.
Para seus parceiros internacionais — principalmente os fornecedores de matérias-primas e commodities como soja e minério de ferro, caso do Brasil —, as políticas de desenvolvimento verde só fazem sentido se eles estiverem alinhados à ideia da civilização ecológica da China. Isso ressalta as inconsistências e contradições em seu sexto princípio de construção de uma civilização ecológica global: a dependência contínua da tecnologia para resolver problemas ambientais e os paralelos com o discurso ocidental sobre “crescimento verde” ainda prevalecem nas políticas da própria China, apesar de os acadêmicos enfatizarem que “a civilização ecológica não é igual à civilização industrial verde”.
Outro passo importante para a cooperação seria definir regras transparentes e mecanismos eficazes para livrar as cadeias produtivas de crimes ambientais e violações de direitos humanos. Para se tornar o líder ambiental que o Brasil almeja ser, pesquisadores da Plataforma Cipó ressaltam a necessidade de “incentivar uma estrutura negociada multilateralmente para estabelecer critérios e políticas socioambientais robustas”.
A maior economia da América Latina está pronta para aproveitar as mudanças geopolíticas. É possível ter uma perspectiva mais ambiciosa sobre como seria a civilização ecológica no Brasil.
Se essas políticas não fizerem uma ruptura radical com as velhas ideias desenvolvimentistas, como o uso indefinido de combustíveis fósseis e o desenvolvimento medido pela produção, o Brasil não será o melhor modelo para ajudar na construção de uma civilização ecológica global. São necessárias conversas sobre economias regenerativas e sociobiodiversas, como as que foram discutidas na recente Conferência Internacional Amazônia e Novas Economias e iniciativas como a Amazônia 4.0.
É necessário haver mais conversas com e sobre a civilização ecológica da China que expresse as deficiências dos modelos de desenvolvimento industrial e centrados no crescimento.
Com o 50º aniversário das relações diplomáticas Brasil-China no próximo ano, a maior economia da América Latina está pronta para aproveitar as mudanças geopolíticas históricas como uma oportunidade para redefinir seu modelo de desenvolvimento. É possível ter uma perspectiva mais ambiciosa sobre como seria a civilização ecológica no Brasil. Exigir dos investidores critérios ambientais mais rigorosos e compromissos para acabar com o desmatamento seriam um primeiro passo importante para desenvolver uma nova relação econômica para além do extrativismo. Mas, para demonstrar a firmeza de seu compromisso com uma civilização ecológica global, tanto o Brasil quanto a China precisam superar urgentemente suas dependências de combustíveis fósseis e mudar substancialmente a governança ambiental global.