<p>Elvis Atachahua Ursua, um dos últimos moradores de Morococha, avista escombros de casas demolidas. As famílias foram realocadas para dar lugar à Toromocho, uma das maiores minas de cobre do Peru, operada pela Aluminum Corporation of China (Imagem: Sally Jabiel)</p>
Negócios

Morococha: O vilarejo que virou ruína para avanço da mineração

Últimas famílias de comunidade peruana são despejadas pela polícia, marcando mais de uma década de resistência e abrindo caminho definitivo para operação de mina de cobre

Por mais de uma década, Elvis Atachahua Ursua resistiu ao avanço da mineração no altiplano peruano. Cercado por escombros e explosões, viveu sem água encanada nem luz elétrica nas ruínas de Morococha, um vilarejo perdido a 4,7 mil metros de altitude e a 150 quilômetros de Lima.

Porém, na manhã de 19 de setembro, a resistência foi vencida, e o vilarejo andino desapareceu. Mais de 250 policiais despejaram as últimas cinco famílias do local. Uma a uma, as casas remanescentes foram demolidas. “Eles cortaram nosso sinal e levaram tudo”, contou Atachahua, em lágrimas. 

Até então, elas recusavam a transferência para Nueva Morococha, o assentamento erguido em 2012 pela Aluminum Corporation of China (Chinalco) para abrigar cerca de cinco mil realocados.

Fundada por migrantes que chegaram ao departamento de Junín para trabalhar na mineração, Morococha viveu uma ironia histórica: suas populações foram removidas para dar lugar a um dos maiores projetos de mineração no Peru. Os despejos abriram espaço para Toromocho, mina de cobre que diariamente produz 170 mil toneladas de um metal essencial à transição energética global.

Atachahua Ursua em frente à sua casa, onde resistiu às tentativas de realocação por mais de uma década
Atachahua Ursua em frente à sua casa, onde resistiu às tentativas de realocação por mais de uma década. Nesse período, ele e as poucas famílias que permaneceram no local dependeram de painéis solares para a iluminação e tiveram que obter água por seus próprios meios (Imagem: Sally Jabiel)

Fundada por migrantes que chegaram ao departamento de Junín para trabalhar na mineração, Morococha viveu uma ironia histórica: suas populações foram removidas para dar lugar a um dos maiores projetos de mineração no Peru. Os despejos abriram espaço para Toromocho, mina de cobre que diariamente produz 170 mil toneladas de um metal essencial à transição energética global.

Últimos dias de Morococha

Até recentemente, Morococha era um labirinto de lonas brancas e ruas em ruínas. Dos que insistiram em permanecer, Yolit Alejo Bonifacio, de 49 anos, via sua pequena casa estremecer a cada explosão da mina a céu aberto. Ao contrário dela, sua mãe e seus irmãos se mudaram para Nueva Morococha. “Muitos saíram por medo”, contou Bonifacio.

Não há reassentamento voluntário. É um deslocamento forçado e desumano
Elvis Atachahua Ursua, ex-morador de Morococha

As famílias remanescentes não tinham acesso à água potável nem à eletricidade — que acabou sendo suprida por painéis solares. O Dialogue Earth visitou o local no início de setembro, quando o acesso a veículos de fora da comunidade era bloqueado pela Chinalco. Só conseguimos entrar na carona do mototáxi de Alejo.

A pressão era constante. Em 2020, duas mulheres foram presas por protestarem contra os bloqueios. A Chinalco então denunciou suas famílias por “vagabundagem”, termo rejeitado pela Justiça peruana, que reconheceu os direitos constitucionais à dignidade e integridade dos moradores. 

Antes da reintegração de posse, Atachahua repetiu ao Dialogue Earth o que vem denunciando há uma década: “Não há reassentamento voluntário. É um deslocamento forçado e desumano”.

Mototáxi de Yolit Alejo Bonifacio
Mototáxi de Yolit Alejo Bonifacio, ex-moradora de Morococha. Quando visitamos o vilarejo no início de setembro, o acesso a veículos desconhecidos era bloqueado pela Chinalco (Imagem: Sally Jabiel)

Em agosto, foi emitida a ordem de desocupação. Na véspera, a polícia já havia barrado as famílias na entrada de Morococha. Elas imploraram para retornar às suas casas. “Fizemos vigília, cozinhamos juntos, sabíamos que nos mandariam embora”, lembra Alejo. “Ninguém dormiu naquela noite”.

Ao amanhecer, a polícia entrou na comunidade “sem qualquer respeito”, segundo ela. “Eles não nos deram nem cinco minutos para pegar nossas coisas. Eles nos empurraram, nos puxaram. Nunca vamos esquecer isso”. Partiram apenas com a roupa do corpo, buscando refúgio em comunidades do departamento de Junín. 

O Dialogue Earth conversou com Edwin Alejandro, coordenador socioambiental da Rede Muqui, que defende os direitos de comunidades afetadas pela mineração. Segundo ele, a operação foi irregular. “As pessoas foram despejadas sem julgamento ou devido processo legal e, até hoje, não sabem onde estão seus pertences”. Até as casas foram demolidas, apesar de uma ordem judicial para preservá-las.

Alejo e Atachahua caminham por Morococha, vilarejo transformado em um labirinto de lonas e ruínas
Alejo e Atachahua caminham por Morococha, vilarejo transformado em um labirinto de lonas e ruínas. De acordo com Edwin Alejandro, da Rede Muqui, as últimas famílias residentes foram despejadas sem julgamento justo ou devido processo legal (Imagem: Sally Jabiel)
cômodo interno de casa branca demolida
As casas em Morococha foram demolidas apesar de uma ordem judicial para preservá-las, segundo Alejandro. Os moradores dizem não ter recuperado seus pertences desde então (Imagem: Sally Jabiel)

Custo oculto do cobre

A demanda por cobre cresce impulsionada pela transição energética global. O metal é essencial para diversas tecnologias e infraestruturas de energia. Redes de recarga de veículos elétricos, por exemplo, exigem grandes quantidades de cobre em seus cabos, enquanto turbinas eólicas offshore dependem de longos cabos de transmissão subaquáticos feitos do mesmo material.

O Peru é o terceiro maior produtor de cobre do mundo, atrás do Chile e da República Democrática do Congo. Em 2024, mais de 72% da produção peruana foi exportada para a China, de acordo com dados oficiais do Peru. Toromocho possui reservas de cobre avaliadas em 5,7 milhões de toneladas.

Morococha atraiu olhos chineses interessados em suprir minerais críticos a projetos de transição energética, conforme o instituto de pesquisa AidData. Em 2024, quase um quinto do cobre peruano foi produzido por duas mineradoras chinesas: a MMG Las Bambas (11,7%) e a Chinalco (7,5%).

Imagens de satélite de Morococha e da mina Toromocho
Imagens de satélite de Morococha e da mina Toromocho. Desde 2012, os moradores do vilarejo têm visto a expansão das atividades relacionadas à mina. À medida que os moradores foram reassentados, suas casas foram demolidas (Imagens de satélite: Maxar Technologies via Google Earth)

Ambas as empresas conduziram processos de reassentamento considerados forçados por moradores e organizações locais. Em 2014, a MMG Las Bambas começou a realocar 1,8 mil pessoas de Fuerabamba, do departamento de Apurímac, no centro-sul do Peru. A empresa herdou o plano de reassentamento e indenização originalmente negociado com os moradores pela antiga proprietária da mina, a suíça Glencore-Xstrata, da qual adquiriu o empreendimento naquele mesmo ano.

As minas Las Bambas e Toromocho foram citadas em um relatório de 2022 do Coletivo sobre Financiamento e Investimento Chinês, Direitos Humanos e Meio Ambiente (CICDHA) como exemplos associados a violações de direitos humanos. Em resposta a um processo na ONU, o governo chinês anunciou a criação de um grupo de trabalho para examinar as denúncias e reafirmou seu compromisso com tratados internacionais de direitos humanos.

O CICDHA considerou o caso de Morococha um “deslocamento forçado”. Já Edwin Alejandro, da Rede Muqui, afirmou que a Chinalco negociou individualmente com as famílias, em vez de com a comunidade, numa “estratégia de dividir para conquistar”.

Em 2017, o governo peruano declarou Morococha uma área de “perigo iminente e não mitigável” por causa da atividade sísmica e das operações de mineração. No entanto, o novo assentamento também apresenta riscos: um estudo de impacto ambiental de 2009 identificou concentrações de chumbo acima dos limites permitidos em quase todas as amostras de solo da área de influência do projeto, além de níveis excessivos de arsênico em diversos pontos de coleta.

Para Alejandro, a decisão do governo de classificar Morococha como uma área de risco serviu como um mecanismo legal para favorecer a Chinalco. “A desapropriação foi legalizada, e a empresa se aproveitou de um sistema corrupto”, afirmou. “A mensagem é clara: se aconteceu em Morococha, pode acontecer em qualquer projeto. É um precedente perigoso”.

Vilarejo de falsas promessas

O Dialogue Earth tentou, sem sucesso, obter respostas da Chinalco sobre o reassentamento de Morococha. Em um vídeo institucional da agência estatal ProInversión, de 2023, o diretor jurídico da empresa, Raúl La Madrid, apresentou o processo como exemplo de “responsabilidade social corporativa”. “A mineradora utiliza os serviços de empresas comunitárias. Todos ganham”, disse.

Vista das ruas e casas de Nueva Morococha
Vista das ruas e casas de Nueva Morococha, assentamento construído pela Chinalco em 2012 para realocar cerca de cinco mil pessoas, a 15 minutos do vilarejo de Morococha (Imagem: Sally Jabiel)

O Dialogue Earth visitou o novo assentamento, a 15 minutos do antigo vilarejo. Nueva Morococha tem avenidas retas, casas idênticas com telhados de tijolo vermelho e parques intocados. A promessa de uma cidade moderna parecia, na verdade, uma vila modelo sem vida. 

“Éramos como uma grande família. Na nova cidade, não há movimento, nem trabalho”, lamenta Noé Gamarra, presidente da Associação de Proprietários Deslocados pelo Projeto Toromocho. 

Durante anos, ele resistiu em Morococha, mas acabou vendendo sua casa à Chinalco. “A empresa que estabeleceu o preço”, disse Gamarra, de 66 anos, uma das figuras mais conhecidas entre os deslocados. “A Chinalco prometeu que a base operativa ficaria na nova cidade para movimentar o comércio. Não cumpriu: não há nem 40% do movimento que havia na cidade antiga”.

Rua vazia em Nueva Morococha
Rua vazia em Nueva Morococha. Segundo a geógrafa Lin Zhu, o novo assentamento parece ter sido planejado para atender às necessidades da mina, e não das pessoas que ali vivem. Ela observa que a vila foi construída “ignorando os modos locais de vida e socialização” (Imagem: Sally Jabiel)

Essa sensação de vazio também foi observada pela geógrafa Lin Zhu, pesquisadora da Universidade de Boston. “O que mais me surpreendeu foi a falta de vida, parecia uma cidade projetada para servir à mina, e não aos seus habitantes”, disse ao Dialogue Earth. Em artigo publicado no The People’s Map of Global China, Lin observou que o assentamento foi construído sob uma “lógica tecnocrática voltada apenas à eficiência administrativa, ignorando os modos locais de vida e socialização”.

Entre todas as promessas feitas pela Chinalco, a mais repetida era a de geração de empregos. No entanto, em 2017, mais da metade da população de Nueva Morococha estava desempregada, apesar da proximidade com a mina, segundo pesquisa da Universidade Nacional do Centro do Peru. “Eles só oferecem empregos precários”, afirmou Gamarra. “Nem mesmo meus filhos, que são profissionais, conseguiram trabalho”.

Segundo Zhu, a transição da mineração subterrânea para a de céu aberto reduziu drasticamente as oportunidades de trabalho. “O resultado são empregos temporários, sem seguro ou estabilidade”, explicou a pesquisadora.

Mina a céu aberto de Toromocho abriga 5,7 milhões de toneladas de cobre
Mina a céu aberto de Toromocho abriga 5,7 milhões de toneladas de cobre. Com a demanda por minerais estratégicos projetada para dobrar por conta da transição energética global, especialistas alertam para a importância de garantir consultas prévias às comunidades (Imagem: Sally Jabiel)

Em 2012, o governo, a Chinalco e a comunidade criaram uma mesa de diálogo para tentar resolver os impasses. Mais de uma década depois, o espaço segue estagnado — e sua validade foi prorrogada até 2026. Lin Zhu escreveu que o mecanismo se tornou “uma tática corporativa e um mecanismo burocrático”, sem resultados concretos. Isso, segundo ela, afasta potenciais investimentos chineses.

“À medida que o mundo caminha para uma transição energética, os países com minerais estratégicos devem ser capazes de articular demandas concretas aos investidores estrangeiros”, disse Zhu. “Nenhuma empresa agirá por iniciativa própria em benefício da comunidade”.

Estima-se que a demanda por minerais estratégicos dobre até 2040, impulsionada pela transição energética. Para Carlos Monge, pesquisador do Grupo de Análise para o Desenvolvimento e especialista no tema, “as comunidades não têm o Estado como aliado nem como árbitro” no Peru. “O que elas enfrentam é uma aliança entre o Estado e as empresas. Sempre foi assim, e continua sendo neste novo ciclo de alta demanda por minerais”.

“Morococha nos ensina que é essencial respeitar os direitos e a consulta prévia, principalmente diante de deslocamentos. Só assim será possível uma transição justa, sem que comunidades inteiras sejam destruídas”, disse Monge.

Morococha foi fundada no início do século 20, a poucos minutos da passagem da montanha Ticlio, no ponto mais alto do que mais tarde se tornaria a Rodovia Central. Agora, “nem mesmo a colina Toromocho existe”, disse Gamarra. “Tudo desapareceu.”

Mas Alejo garante que “a história nunca será apagada”. Vivendo a 170 quilômetros de distância da antiga comunidade, ela disse: “Perdi Morococha, mas não a minha voz”.

O Dialogue Earth entrou em contato com várias famílias em Nueva Morococha para comentar o caso, mas elas preferiram não se manifestar.

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