Água

Perto do colapso hídrico, Chile recorre a usinas de dessalinização

Diante da escassez de água cada vez mais constante no país, governo e empresas avançam com dessalinização do mar, apesar dos riscos ambientais
<p>Presidente chileno Gabriel Boric faz discurso em visita à usina de dessalinização da Corporação Nacional de Cobre (Codelco) em Tocopilla, província de Antofagasta, em outubro de 2024. A dessalinização tem sido apontada como alternativa para mitigar a escassez de água no país (Imagem: Sebastián Rodríguez / Presidência do Chile)</p>

Presidente chileno Gabriel Boric faz discurso em visita à usina de dessalinização da Corporação Nacional de Cobre (Codelco) em Tocopilla, província de Antofagasta, em outubro de 2024. A dessalinização tem sido apontada como alternativa para mitigar a escassez de água no país (Imagem: Sebastián Rodríguez / Presidência do Chile)

Quando a água voltou a fluir pelo leito de um rio seco na zona central do Chile, no ano passado, os moradores reagiram com espanto e alegria. As pessoas aplaudiram e se abraçaram — afinal, era algo que esperavam há muito tempo. 

Petorca, município a 220 quilômetros de Santiago, na região de Valparaíso, tornou-se um símbolo da desigualdade hídrica no país: a grave estiagem da última década secou o rio Petorca e deixou a população dependente de caminhões-pipa. A falta de acesso à água prejudicou os pequenos produtores rurais, que por gerações viveram do cultivo hortifrutigranjeiro, incluindo a produção de abacates. Em 24 de junho de 2024, fortes chuvas levaram alívio aos agricultores da região.

A alegria que chegou com as chuvas foi, no entanto, um evento passageiro em meio a anos de alto estresse hídrico — a chamada de megasseca. O abastecimento de água na região foi duramente afetado na década de 2010, situação agravada pelo alto consumo hídrico do setor agrícola.

O clima chileno apresenta grande variação nas chuvas de ano para ano, com épocas muito úmidas seguidas de outras muito secas. “A anomalia da megasseca é que tivemos muitos anos secos consecutivos”, observou Camila Álvarez-Garretón, hidróloga e pesquisadora do Centro de Pesquisas sobre Clima e Resiliência do Chile (CR2).

Cultivo de frutas cítricas em Petorca, região de Valparaíso, Chile
Cultivo de frutas cítricas em Petorca, região de Valparaíso, Chile. A seca na cidade se tornou um símbolo da escassez de água no país na última década, deixando a população dependente de caminhões-pipa (Imagem: Freedom Wanted / Alamy)

A pesquisadora explicou que o país passou por secas extremas em 2019 e 2021 e que isso faz parte de um problema mais amplo. “Isso se deve a dois fenômenos que se sobrepõem: a grande variabilidade interanual e os impactos antropogênicos das mudanças climáticas. Esse último ponto se manifestou muito claramente no Chile na forma de um déficit de precipitação”, acrescentou.

Álvarez-Garretón ressaltou que, embora todo o planeta esteja sofrendo com a elevação das temperaturas, as transformações nos regimes de chuva variam de região para região. Há áreas nas quais o aquecimento global provoca mais chuvas, enquanto no centro-sul do Chile há uma tendência de queda constante. As projeções científicas indicam que isso deve continuar até o fim do século.

Embora a disponibilidade de água seja relativamente alta no Chile de maneira geral, as realidades são muito diferentes nos distintos rincões do país. Nas áreas hiperáridas do Deserto do Atacama, no norte, praticamente não há chuva; já no sul dos Andes, um único ano pode registrar um acúmulo de chuva de mais de três metros. 

O Chile tem mais de quatro mil quilômetros de extensão, com uma geografia variada e um clima influenciado pelo Oceano Pacífico — incluindo fenômenos naturais de grande escala, como El Niño e La Niña.

El Niño e La Niña

El Niño é um fenômeno climático que consiste no aquecimento anormal da água superficial do Oceano Pacífico Equatorial. Isso afeta os padrões de chuva e o clima em todo o mundo, elevando as temperaturas globais.

O El Niño faz parte de um fenômeno chamado El Niño-Oscilação Sul (Enos). Os eventos de El Niño não ocorrem em um cronograma regular, mas, em média, aparecem a cada dois ou sete anos. A fase oposta, de resfriamento do Pacífico, é chamada de La Niña.

“O fenômeno La Niña [que começou em dezembro] já está em retrocesso — foi de curta duração e baixa intensidade”, explicou Roberto Rondanelli, professor do departamento de geofísica da Universidade do Chile. “O bom é que ele ocorreu na estação em que não chove na zona central do país e, portanto, não teve tanta importância”. 

“Quando não há El Niño ou La Niña, ficamos em uma situação neutra. Isso não significa que choverá imediatamente, mas sim que tudo pode acontecer. Atualmente, vamos rumo a uma situação neutra ou de El Niño fraco, mais favorável à precipitação na região central do Chile”.

Rondanelli também comentou com o Dialogue Earth sobre as megassecas históricas do Chile, incluindo uma na região central que durou 12 anos, entre 1770 e 1782. Esses fenômenos não são novos, explicou ele, mas agora são exacerbados em um contexto de crise climática. 

Um relatório do CR2 sobre segurança hídrica, publicado em 2023 com coautoria de Álvarez-Garretón, observou que as tendências das últimas seis décadas indicam um aumento significativo nos níveis de estresse hídrico na região central do Chile. Nesse período, o consumo de água dobrou, impulsionado principalmente pela expansão agrícola e a silvicultura.

Dia zero

Em 2019, as jornalistas Tania Tamayo e Alejandra Carmona publicaram um livro dedicado ao tema, El negocio del agua (“O negócio da água”, em tradução livre). Um trecho diz:

“O quadro é sombrio. À medida que o deserto avança e a água se torna escassa, um abacateiro no Chile consome, em média, mais água do que uma pessoa em Petorca. As empresas de mineração avançaram a tal ponto que alguns lugares nas terras altas perderam seus habitantes. As empresas de silvicultura não figuram nos números da pegada hídrica, apesar de consumirem água da chuva há anos”.

O livro destaca que, no caso chileno, há “secas seletivas” em um território onde a água é “um bem de mercado”. De acordo com a publicação, a disponibilidade de água também é desigual na agricultura: “Há setores com mais acesso a recursos hídricos, uma situação diretamente relacionada à capacidade econômica dos agricultores”. 

O relatório do CR2 afirmou que, na região central do Chile, é usada água subterrânea em um volume superior à capacidade de recarga dos aquíferos. O resultado disso é uma diminuição gradual da disponibilidade de água subterrânea.

“Isso aprofunda os impactos socioeconômicos e ambientais”, alertou o relatório, e está levando o país a um “esgotamento absoluto” de seus recursos hídricos — conceito conhecido como “dia zero”. “O momento do dia zero é incerto, mas, considerando que o prazo é de algumas décadas a alguns séculos, ele representa um problema intergeracional para Chile”, observou o documento. 

Álvarez-Garretón explicou que a taxa de consumo hídrico do Chile se mantém próxima aos limites naturais das reservas de água potável. Mas, apesar das variações interanuais de precipitação no país, os anos de seca não têm representado uma diminuição no uso de água. Segundo a pesquisadora, não há políticas ou protocolos em vigor para limitar o consumo e criar reservas de água quando a precipitação diminui.

O momento do dia zero é incerto, mas ele representa um problema intergeracional para o Chile
Relatório do CR2 sobre segurança hídrica no Chile

Em 2018, o dia zero quase ocorreu na Cidade do Cabo, na África do Sul. Autoridades usaram o termo ao alertar a população de que as torneiras ficariam secas em questão de semanas se não houvesse uma queda drástica no consumo de água. Felizmente, a cidade conseguiu evitar a catástrofe. 

Mas o Uruguai não: a área metropolitana de Montevidéu ficou sem acesso à água potável em 2023 após um período de pouca chuva. Isso levou a cidade a extrair água salobra do Rio da Prata para manter seu abastecimento, e o governo aconselhou gestantes e pessoas com hipertensão, problemas renais ou cardíacos a limitar o consumo de água da torneira.

Soluções para a crise

No contexto da emergência climática, cientistas, acadêmicos e empresas têm buscado soluções para as megassecas e os demais problemas causados pela falta de acesso à água. 

As usinas de dessalinização são uma alternativa contra a escassez de água. Elas convertem a água do mar em água doce para consumo humano, industrial e agrícola. As usinas de dessalinização extraem um grande volume de água do oceano em alta velocidade, que depois é processada para remover óleos, algas e outros elementos marinhos. Em seguida, ela é filtrada por osmose reversa, processo de purificação da água.

Atualmente, o Chile tem 24 usinas de dessalinização, 17 das quais abastecem o setor de mineração. A primeira usina de dessalinização da América Latina para água potável foi inaugurada na região de Antofagasta, no norte chileno, em 2003. No Atacama, a primeira usina de dessalinização estatal do Chile — e a maior do país para abastecimento público de água — foi inaugurada em 2018.

Construção da nova usina de dessalinização da Codelco em Antofagasta, norte do Chile
Construção da nova usina de dessalinização da Codelco em Antofagasta, norte do Chile. Embora esses projetos possam aliviar a escassez de água, especialistas temem que a salmoura resultante da filtragem gere impactos ambientais a ecossistemas costeiros (Imagem: Sebastián Rodríguez / Presidência do Chile)

Em dezembro, foi lançada uma licitação para construir uma usina de dessalinização na região norte de Coquimbo; empresas chinesas, europeias e nacionais estão concorrendo. Em janeiro, o governo chileno anunciou mais quatro usinas de dessalinização, tanto para fins residenciais quanto industriais. 

O engenheiro mecânico Pedro Sariego, acadêmico da Universidade Técnica Federico Santa María, em Valparaíso, propôs uma solução em grande escala: uma usina de dessalinização de água movida a energia solar em Valparaíso (aproximadamente 350 km ao sul de Coquimbo), projetada para substituir ou complementar a água gerada pelo reservatório Catemu, destinado a facilitar a irrigação de quase 26.600 hectares de terra. Sua ideia foi concebida como uma maneira mais sustentável de produzir água potável que também reduziria os custos de transporte de água.

“O que temos que fazer, no final, é chegar a algum tipo de acordo sobre água e energia. Essa é a chave”, diz Sariego. “Falo muito sobre trazer ou movimentar grandes volumes de água a baixo custo por meio de sinergia de energia alternativa”.

Desvantagens da dessalinização

A introdução de usinas de dessalinização gera algumas preocupações. Especialistas temem impactos ambientais negativos para ecossistemas e a vida marinha. 

Um estudo de 2019 alertou para os riscos ambientais das usinas de dessalinização, especialmente por causa dos altos níveis de salmoura produzida. A maior parte desse concentrado hipersalino é devolvida ao mar, aumentando a salinidade da água. Os pesquisadores apontaram que isso pode reduzir a disponibilidade de nutrientes e elevar a temperatura da água, já que a salinidade afeta sua densidade e, consequentemente, a circulação das correntes oceânicas.

Enquanto isso, o impacto das mudanças climáticas é cada vez mais preocupante. Na conferência Desalination Latin America 2025, realizada em Santiago em março, o engenheiro Daniel Rojas, da empresa de infraestrutura Brugg Group, alertou que a elevação do nível do mar e a maior frequência de tempestades estão provocando danos estruturais em construções na região. Rojas recomendou a instalação de barragens ou reservatórios de sedimentos marinhos, além da reabilitação de áreas úmidas, para amortecer esses efeitos.

As mudanças climáticas também comprometem o funcionamento das próprias usinas de dessalinização, porque a água mais quente dificulta a remoção do sal, exigindo mais energia e recursos para o processo. 

Ainda falta uma regulamentação clara para a construção e operação dessas usinas. Mesmo assim, Sariego argumenta que a tecnologia é amplamente testada e segura. Segundo ele, há cerca de 20 mil usinas de dessalinização no mundo sem nenhum registro de impacto ecológico. “Ela tem que funcionar rigorosamente bem, seguindo os padrões. E, nesse aspecto, a engenharia chilena — pelo menos aquela ligada ao setor de mineração — é bastante rigorosa, bastante sistemática, e todos os padrões são cumpridos”. 

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