Na tarde de 18 de setembro de 2020, o transbordamento do córrego La Rafita, na cidade colombiana de Medellín, inundou o bairro de El Pacífico. Quatro casas foram arrastadas pela correnteza e outras 12 ficaram alagadas.
“Foi uma tragédia total. Quando a noite caiu, tudo estava escuro. Não dava para enxergar”, lembra Nancy Quirós, representante do conselho comunitário El Pacífico.
Os bombeiros chegaram ao anoitecer e trabalharam no escuro para resgatar as pessoas presas em suas casas. Os moradores — em sua maioria vítimas de deslocamentos forçados pelo conflito armado colombiano — já estavam acostumados a viver sem iluminação pública, devido à falta de manutenção. Eles evitavam sair à noite e, se necessário, usavam seus telefones celulares para iluminar as estreitas escadas de concreto que ligam as casas.
O desastre de cinco anos atrás os levou a buscar soluções para esse problema. A primeira delas foi a criação de uma turbina hidráulica caseira — construída com colheres fundas, geralmente usadas para beber mazamorra (uma sopa típica de Medellín); uma roda de bicicleta e baterias de computador. Ao conectar esse sistema a um gerador, os moradores conseguiram gerar eletricidade que até hoje ilumina a sede do conselho comunitário.
Em seguida, vieram oito painéis solares, financiados por meio de um projeto conjunto com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação da Colômbia.
A participação da própria comunidade de El Pacífico nas etapas de construção, instalação e autogestão energética está alinhada ao conceito de transição energética justa — e outras comunidades de Medellín seguem caminhos parecidos. Na segunda maior cidade do país, há pelo menos outras três iniciativas baseadas no aproveitamento da energia solar.
Mais do que instalar painéis solares
Os painéis solares no bairro de La Estrecha, em Medellín, ganharam fama rapidamente. Rodrigo García, um dos moradores, lembra que foi seu filho quem trouxe o primeiro painel para casa em 2020, para testar um projeto-piloto que a dupla havia desenvolvido junto à Universidade EIA, na cidade de Envigado. Após instalado, o painel reduziu a conta de energia da família em 20% a 30%.
A notícia logo se espalhou. Outras 23 famílias fizeram o mesmo, e 46 painéis foram instalados nos telhados de três casas na parte alta do bairro.
No entanto, em dezembro de 2023, o projeto foi encerrado. Para evitar a perda de tudo o que havia sido alcançado, a comunidade se organizou. La Estrecha agora é geradora de energia distribuída: produz energia solar suficiente para suprir a própria demanda e vender o excedente.
Andrés Castaño, representante legal da comunidade de La Estrecha, explicou que a principal dificuldade é a falta de conhecimento técnico local. Isso dificulta as negociações com as empresas de energia e o engajamento de mais vizinhos no projeto.
Esse problema não é exclusivo de La Estrecha. Os líderes do projeto Huertas para la Paz, que promove hortas comunitárias, enfrentam desafios parecidos. Em 2021, uma fundação lhes deu um forno solar, que usa espelhos para captar a energia do sol. O equipamento pode ser usado para cozinhar alimentos ou, no caso da iniciativa, desidratar plantas aromáticas.
Esneda Ramírez, líder comunitária, disse que tem sido difícil manter o projeto porque eles não foram suficientemente capacitados para otimizar o forno: “Precisamos de um técnico para nos ensinar mais sobre a importância do forno, porque não sabemos como aproveitá-lo corretamente. Eles me explicaram como usá-lo, mas para outras pessoas é difícil, porque requer paciência e os benefícios não são tão perceptíveis”.
Outro obstáculo são as condições climáticas da cidade. Medellín costuma ficar nublada e as chuvas são intermitentes nos bairros mais altos. Isso exige que os moradores estejam sempre atentos ao posicionamento do forno à medida que o sol se move, além dos cuidados em caso de chuva, já que a umidade pode estragar o processo de secagem das plantas.
“O forno funciona bem, mas é melhor em lugares quentes como a costa, onde há muito sol. O clima aqui não ajuda”, disse Ramírez. Ela disse ser a única integrante da iniciativa Huertas para la Paz que ainda tem alguma fé no projeto do forno solar.
Autonomia energética significa não depender dos outros e que qualquer um possa fazer parte do projetoJames Rúa, líder comunitário de El Pacífico
Para superar essas barreiras, a Escola Popular de Autonomia (EPA) tem realizado programas de capacitação gratuitos em El Pacífico. Eles são adaptados às necessidades energéticas locais e às ferramentas de geração de energia disponíveis. Isso permitiu que qualquer morador, inclusive crianças, pudessem entender como a eletricidade é gerada. A comunidade também participa da construção de turbinas hidráulicas e da manutenção de painéis solares.
“Para nós, autonomia energética significa não depender dos outros e que qualquer um possa fazer parte do projeto”, disse James Rúa, líder comunitário de El Pacífico. “A participação coletiva impede que nossa iniciativa seja escanteada ou discriminada na comunidade, porque todos estamos envolvidos”.
Para o sucesso desses projetos de transição energética justa, porém, há outra questão fundamental: o direito à propriedade. Em outra oportunidade, a Universidade EIA tentou instalar painéis no bairro Comuna 13, mas a maioria das casas era alugada, o que, segundo Rodrigo García, dificultou a criação de um projeto coeso.
A geração de energia renovável em pequena escala não se limita às residências dos bairros periféricos de Medellín, mas também pode servir como solução para diversos setores e negócios. É o caso de Sofia Carvalho, da Merlin Producciones, selo musical que usa energia solar em suas atividades.
“Esse é um caminho incômodo, que pode exigir mais tempo, dinheiro e reflexão, mas é necessário”, destacou Carvalho. “É preciso procurar uma rede de apoio, porque essa é uma estrada solitária. Às vezes, é preciso remar contra a corrente. Com essa rede, você compartilha conhecimentos, ações e frustrações”.
Nenhuma das quatro iniciativas consultadas pelo Dialogue Earth conhecia o trabalho das outras, reforçando uma certa desconexão entre projetos com finalidades parecidas.
Desde que a empresa Celsia presenteou a equipe da Merlin Producciones com um telhado solar, há dois anos, a gravadora vem usando painéis fotovoltaicos em seu trabalho — e hoje já faz parte da rede de geração distribuída no país. O selo produziu La Sinfonía de los Bichos Raros (“A Sinfonia dos Bichos Estranhos”, em português), seu primeiro disco feito com energia 100% renovável. O álbum busca sensibilizar o público em relação ao consumo desenfreado e à preservação da natureza.
Desafios da transição energética nas cidades
Os grandes projetos de transição energética na Colômbia têm se concentrado nas zonas rurais, muitas delas sem acesso à eletricidade. Porém, especialistas entendem que também é necessário promover essas iniciativas nos centros urbanos.
Juan Pablo Soler, pesquisador de justiça climática e energia da organização ambiental Censo de Água Viva, destacou que a principal demanda energética da Colômbia está concentrada nas grandes cidades.
Soler explicou que a Colômbia vem explorando soluções de transição energética há mais de 20 anos, mas esses esforços têm sido limitados pela escassa regulamentação e vontade política. Ele também questionou a falta de reconhecimento para as comunidades que impulsionaram esses projetos renováveis, já que os investimentos geralmente são voltados para grandes empresas privadas e zonas rurais fora da rede elétrica. De acordo com ele, os habitantes de áreas urbanas, como Medellín, enfrentam desafios adicionais devido ao descompasso entre a oferta de soluções tecnológicas e as reais necessidades das comunidades.
Violeta Garrido, pesquisadora de filosofia da Universidade de Granada, questionou a ideia de basear a transformação socioambiental somente em iniciativas de energia renovável. Para ela, o “solucionismo tecnológico” — a crença de que a tecnologia resolverá os problemas ambientais — cria uma “cultura de passividade” e “não nos força a mudar nossos padrões de produção, distribuição e consumo”.
Por enquanto, as iniciativas de La Estrecha, El Pacífico e Merlin Producciones enfrentam o desafio de manter suas atividades e despertar o interesse de outras pessoas. A chave, dizem especialistas, é compartilhar conhecimento e garantir que as novas gerações assumam a liderança em uma transição energética que seja realmente justa, aprendendo com as lições do passado.
“Estamos envelhecendo e, com tudo o que aprendemos, temos de dizer às crianças que não é difícil fazer esses projetos de energia”, afirmou James Rúa, do bairro El Pacífico. “Elas também fazem parte da comunidade e são elas que ficarão neste planeta quando nós formos embora”.
Esta reportagem foi produzida como parte do projeto Narrar la Transición Energética Justa, promovido pela Alianza Potencia Energética Latam.