Energia

Geração distribuída acelera transição energética na América Latina

Rumo às energias renováveis, consumidores assumem papel cada vez mais central: além de gerar sua própria energia limpa, também podem vender o excedente para a rede elétrica
<p>Painéis solares cobrem telhado de estacionamento em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Atualmente, o Brasil responde por 83% da capacidade instalada de geração distribuída na América Latina e no Caribe (Imagem: Wolfgang Kaehler / Alamy)</p>

Painéis solares cobrem telhado de estacionamento em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Atualmente, o Brasil responde por 83% da capacidade instalada de geração distribuída na América Latina e no Caribe (Imagem: Wolfgang Kaehler / Alamy)

O abastecimento elétrico geralmente é uma atividade centralizada por um pequeno número de empresas: a energia é gerada em grandes usinas e enviada aos consumidores por meio de redes que atravessam longas distâncias. Agora, a chamada geração distribuída busca criar um modelo descentralizado, transformando os consumidores em produtores de energia limpa.

O termo geração distribuída refere-se a uma série de tecnologias que geram eletricidade no local de uso ou próximo a ele, principalmente por meio de painéis solares, mas também com usinas eólicas. Esses sistemas podem abastecer uma única estrutura, como uma casa, ou podem fazer parte de uma microrrede conectada a um sistema maior, como ocorre em grandes instalações industriais. 

Com esse modelo, a eletricidade não flui unicamente da rede para o consumidor. Em vez disso, os usuários podem produzir eletricidade para seu consumo próprio e também vendê-la ao mercado quando houver excedente. Isso cria fluxos bidirecionais e permite que consumidores assumam o controle de sua própria demanda de energia.

A América Latina e o Caribe têm visto uma enorme expansão da geração distribuída de energia, impulsionada principalmente por Brasil, México, Porto Rico, República Dominicana, Chile e Colômbia. A região passou de apenas um gigawatt (GW) de capacidade instalada com sistemas distribuídos em 2017 para 31,8 GW em 2023, ano com os últimos dados disponíveis, conforme a consultoria de energia Onred. Praticamente todas as unidades geradoras usam painéis solares.

Junto aos enormes parques solares e eólicos espalhados pelo continente, a geração distribuída tornou-se um dos principais motores da transição energética latino-americana. Líder global em geração de eletricidade limpa graças a seus recursos hidrelétricos, a região segue expandindo sua produção renovável. Segundo a Agência Internacional de Energia, a participação das fontes renováveis no abastecimento elétrico deve atingir de 60% a 80% até 2050. 

“As grandes usinas não são suficientes para cumprir as metas climáticas. A energia distribuída permite que os usuários participem em massa da transição energética”, avaliou Ignacio Romero, cofundador da Onred. “É uma mudança cultural após décadas com um setor de energia operado de forma centralizada por grandes empresas”.

Geração distribuída na América Latina

A partir de 2007, os países da América Latina e do Caribe começaram a criar legislações específicas sobre geração distribuída. O México foi pioneiro na adoção de um marco regulatório, e agora 15 países agora têm regulamentações sobre o tema. Juntas, essas nações respondem por 85% da demanda de eletricidade da região.

A expansão da energia distribuída em 2023 atingiu uma marca histórica: 86 mil novos sistemas geraram 9,34 GW, cerca de 7,5% a mais do que em 2022. O Brasil agora responde por 83% da capacidade instalada na região, seguido pelo México (10%) e Porto Rico (2,4%). Atualmente, metade da tecnologia solar na região está instalada no modo distribuído.

“O setor cresceu muito, principalmente no Brasil. O país está adicionando 1 GW mensal de energia solar e 75% disso é geração distribuída”, explicou Marcelo Álvarez, executivo do Conselho Global de Energia Solar. “Outros países, como Colômbia, Chile e vários do Caribe, também estão ampliando sua produção, e há expectativas de expansão na Argentina nos próximos anos”.

Em 2023, devido ao recorde de instalações de painéis solares, mais de 100 mil empregos associados à geração distribuída foram criados na região, segundo as estimativas da Onterra — a maioria dessas vagas está concentrada no Brasil. Além disso, graças à capacidade instalada desses sistemas, a consultoria calcula que se evitou a emissão de 8 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente naquele ano — o equivalente à poluição produzida por 1,8 milhão de carros movidos a gasolina.

Presidente chileno Gabriel Boric (centro) na inauguração de uma usina de armazenamento de energia na região de Antofagasta
Presidente chileno Gabriel Boric (centro) na inauguração de uma usina de armazenamento de energia na região de Antofagasta, abril de 2024. A geração distribuída está crescendo no Chile e também deve se expandir por países vizinhos, como a Argentina (Imagem: Ximena Navarro / Presidência da República do Chile)

“Os países com mais geração distribuída fizeram suas regulamentações primeiro”, disse Maria Paz Cristófalo, também cofundadora da Onred. “Depois disso, outros fatores entram em jogo: a necessidade da geração distribuída diante dos eventos climáticos extremos que afetam as redes elétricas das ilhas caribenhas, e o financiamento, elemento central para qualquer projeto. No Brasil, houve bastante financiamento”.

Benefícios da geração distribuída

A consultora Rosilena Lindo Riggs, ex-secretária panamenha de Energia, ressaltou que a geração distribuída traz muitos benefícios à região. “É rápida de instalar, com custo de manutenção baixo e tecnologia escalável, dando mais estabilidade ao sistema elétrico. É uma tecnologia desenvolvida por e para a população”.

Os consumidores são os principais beneficiários, pois têm acesso a uma fonte segura de energia, com menos interrupções no abastecimento — e, em muitos casos, mais barata do que a da rede elétrica. A geração distribuída também reduz as perdas de energia associadas ao fluxo pelas linhas de transmissão e diminui os custos ligados ao desenvolvimento de novas infraestruturas.

Os empregos gerados são outra grande vantagem, explicou Gastón Siroit, consultor técnico da Organização Latino-Americana de Energia. “Há uma diferença astronômica entre instalar um quilowatt (KW) em um pequeno sistema de geração solar distribuída e acrescentar a mesma capacidade em um parque solar de grande porte”, explicou ele. “É muito mais trabalho, você tem que ir a cada telhado, montar os painéis e fazer as conexões”.

Marcelo Álvarez, do Conselho Global de Energia Solar, calculou que a geração distribuída cria mais empregos por unidade de energia do que qualquer outro tipo de sistema, principalmente nas etapas de instalação, manutenção e prestação de serviços. “Ela gera até dez vezes mais empregos do que os grandes parques solares”, disse Álvarez. 

Embora os painéis sejam importados, outros produtos como cabos e transformadores são produzidos na região, acrescentou.

Painéis solares na aldeia de Piyulaga, território indígena do Xingu
Painéis solares na aldeia de Piyulaga, território indígena do Xingu, Mato Grosso. A geração distribuída de energia pode ajudar a levar eletricidade a locais remotos (Imagem: Flávia Milhorance / Dialogue Earth)

A geração distribuída também tem sido vista como uma das melhores maneiras de combater a pobreza energética na região. Embora 97% da população na América Latina e no Caribe tenha acesso à eletricidade, algumas áreas remotas sofrem com a escassa cobertura e má qualidade do serviço. Para sanar esse problema, vários países da região mantêm programas para apoiar iniciativas comunitárias de geração solar distribuída, como os painéis solares instalados em aldeias amazônicas.

Esses projetos não buscam só melhorar o acesso e a qualidade dos serviços de abastecimento de energia, mas também incentivam a participação ativa dos cidadãos no setor. Para Giovanni Pabón, diretor de energia da organização Transforma, essas iniciativas “capacitam as pessoas a assumir o controle da energia que elas mesmas produzem”.

Desafios do setor

Embora a geração distribuída possa reduzir os custos da energia a longo prazo, a instalação de painéis solares ainda pode custar milhares de dólares — um preço proibitivo para muitas pessoas. Incentivos públicos, como créditos e subsídios fiscais, podem ajudar a reduzir os custos iniciais. Porém, nem todos os países da região têm essas mesmas políticas. 

“Há uma necessidade de novos instrumentos financeiros que ajudem as famílias e reduzam as desigualdades”, disse Rosilena Lindo Riggs. “O setor de geração distribuída está avançando, mas precisamos trabalhar para popularizá-lo ainda mais, especialmente entre famílias pobres. Aqueles que não dispõem dos meios para instalar esses sistemas geralmente são os mais afetados por eventos climáticos extremos”.

Há uma necessidade de novos instrumentos financeiros que ajudem as famílias e reduzam as desigualdades
Rosilena Lindo Riggs, ex-secretária de Energia do Panamá

Franco Borrello, cofundador da Onred, disse que os custos continuam caindo e as tarifas de eletricidade permanecem altas, o que fortalece o setor. “As empresas e as indústrias tendem a adotar a distribuição primeiro porque têm capital para isso ou podem recorrer a empréstimos. Em seguida, vem o setor residencial com poder de compra e, então, ele se torna mais difundido”, explicou.

Há uma expectativa de que a energia distribuída possa se tornar a segunda maior fonte de geração de eletricidade no Brasil até 2029, atrás apenas das hidrelétricas. Os especialistas consultados pelo Dialogue Earth também esperam um grande crescimento na Argentina nos próximos anos. Atualmente, o país tem apenas 60 MW de capacidade distribuída instalada e 2,2 mil usuários geradores de energia.

Além disso, há um potencial de crescimento do armazenamento de energia com baterias, que pode ser desenvolvido simultaneamente aos pequenos sistemas solares. “Se os preços das baterias baixarem, você chegará a um sistema quase perfeito, no qual eliminará a necessidade de estar conectado à rede. Estamos nos aproximando cada vez mais dessa realidade”, concluiu Siroit.

-->