Em agosto de 2024, um apagão deixou 80% da Venezuela no escuro por cerca de 12 horas. E não foi uma exceção. Cortes de energia estão cada vez mais frequentes no país diante da sobrecarga dos sistemas de geração e distribuição. Em alguns casos, se estendem por dias.
Além disso, para tentar reduzir a pressão sobre a rede, o governo de Nicolás Maduro adota cortes programados de até quatro horas, como parte do Plano de Administração de Carga. Este ano, foram impostas novas restrições: entre março e maio, as instalações de serviços públicos estiveram abertas por apenas meio expediente.
O governo venezuelano justifica o problema com o argumento da crise climática, que reduziu o nível d’água dos reservatórios usados na geração elétrica. Além disso, em maio, o presidente Maduro culpou a oposição e o grupo hacker Anonymous de terem orquestrado um suposto ataque à Hidrelétrica Simón Bolívar, que gera 60% da eletricidade da Venezuela.
Vários especialistas consultados pelo Dialogue Earth explicam que as interrupções no abastecimento de eletricidade não são causadas por sabotagem, e sim por falta de manutenção, desmatamento no entorno das hidrelétricas e má gestão. São problemas que perduram desde 2019, quando um apagão deixou vários estados sem energia por pelo menos cinco dias. A partir daí, foi criado o plano de cortes programados.
O sistema elétrico da Venezuela depende majoritariamente da geração hidrelétrica no sul do país, onde há grandes barragens cercadas por florestas nativas. Por décadas, esse modelo funcionou de forma eficaz e, quando necessário, eram ativadas usinas termelétricas a gás.
A nacionalização do serviço elétrico venezuelano, iniciada em 2007 pelo então governo de Hugo Chávez, provocou um sucateamento do setor — o que, em outros países sul-americanos, já ocorreu quando houve o processo inverso de privatização. Desde então, o setor elétrico amarga a falta de investimentos e a perda de funcionários experientes, substituídos por outros mais alinhados ao governo, porém com menos experiência na área.
Atualmente, os cortes de energia fazem parte do dia a dia venezuelano, levando milhares de pessoas a comprar geradores, lâmpadas recarregáveis e carregadores solares para celulares.
Futuro solar em Mérida?
Em junho de 2024, durante sua terceira campanha à presidência, Maduro anunciou um plano de geração solar, com a meta de instalar 3 gigawatts (GW) de capacidade nos Andes venezuelanos. Os projetos teriam apoio de Turquia, Rússia, Índia e China.
Em janeiro deste ano — após ter reivindicado sua vitória nas eleições em uma disputa marcada por denúncias de fraude e perseguição a opositores —, Maduro anunciou a inauguração da primeira usina solar de sua nova administração, em El Vigía, no estado de Mérida. A capacidade de geração não foi divulgada, mas o sistema conta com 1.207 painéis solares e deve atender cerca de 2.200 famílias, segundo o governo.
Ainda em janeiro, o então governador de Mérida, Jehyson Guzmán, assinou um convênio com a empresa chinesa Green Full para a construção de outro projeto, uma usina solar com capacidade instalada de 50 MW, para atender a 40% da demanda elétrica do estado.
Em ambos os casos, autoridades afirmaram se tratar da maior usina solar do país, mas faltam informações para corroborá-las.
O parque solar será instalado na antiga termelétrica Don Luis Zambrano, na cidade de El Vigía, que enfrenta problemas desde a sua inauguração em 2014. Apesar de investimentos de US$ 31 milhões em 2018, a usina está inoperante desde 2020. Representantes da Green Full visitaram as instalações junto às autoridades locais em janeiro, mas não foram divulgados detalhes da visita ou outras informações do projeto.
O estado de Mérida, atravessado pela Cordilheira dos Andes, tem o menor potencial fotovoltaico do país, segundo o Global Solar Atlas. Nenhuma fonte entrevistada pelo Dialogue Earth conseguiu explicar por que o estado foi escolhido para sediar esses projetos.
Usinas solares sem energia
Não é a primeira vez que políticos venezuelanos afirmam que uma nova usina solar será a maior de Mérida ou do país. A primeira foi inaugurada em 2009 como parte do programa Semeando Luz, do governo Chávez, para levar a energia solar e eólica a áreas remotas.
A comunidade de El Quinó, no Parque Nacional da Serra Nevada, foi uma das primeiras beneficiadas pelo programa. Em novembro de 2024, mais de 15 anos após os painéis solares terem sido instalados, informações oficiais apontavam que a usina fornecia energia para cerca de 200 pessoas.
Outros projetos semelhantes em Mérida não tiveram a mesma sorte. Em Páramo de Los Conejos, comunidade rural localizada a norte da capital do estado, um sistema de geração de energia eólica e solar foi instalado em 2013. Sem estradas, o material precisou ser transportado por teleférico. O objetivo era beneficiar 150 pessoas, com um custo de mais de US$ 250 mil, conforme a Corporação Nacional de Eletricidade.
O parque solar em El Vigía é outro ‘elefante vermelho’ apresentado com grande pompa, mas que só atendeu a um grupo muito pequeno de moradoresMorador próximo à usina no estado de Mérida
Segundo apuração do Dialogue Earth, o sistema funcionou até janeiro de 2023. Desde então, o mau uso, a falta de manutenção e a obsolescência dos equipamentos reduziram drasticamente sua capacidade, que hoje abastece apenas uma escola e quatro residências.
Há outros obstáculos à energia solar em Mérida: a usina em El Vigía — oficialmente inaugurada por Maduro em janeiro, mas em operação desde o ano passado — não tem baterias para armazenar energia e manter a distribuição quando falta radiação solar.
“Após inaugurar os painéis, o governo disse que traria as baterias, mas isso já faz quase um ano”, disse um morador que pediu anonimato por medo de represálias.
Outros dizem que a usina nunca foi totalmente concluída. “Não funcionou no meu prédio, porque ele não estava ligado ao sistema de bombeamento de água”, contou outro morador que também pediu anonimato.
“Na minha opinião, é mais um ‘elefante vermelho’”, diz o morador referindo-se à cor do partido governista e às suas obras inacabadas. “É apresentado com grande pompa, mas só atendeu a um grupo muito pequeno de moradores”, completou.
O governo não divulgou detalhes sobre os investimentos, os equipamentos utilizados ou as empresas envolvidas no projeto, o que reforça as críticas da oposição sobre a falta de transparência nas ações do Estado.
Em fevereiro de 2023, Guzmán anunciou aquilo que, segundo ele, teria sido a primeira usina pública de energia solar em Mérida. Esse “projeto-piloto” na zona rural de Llano de El Anís, que supostamente opera com apenas 40% de sua capacidade, é composto por 135 painéis solares e gera eletricidade para 17 casas, um centro de saúde e uma escola.
Embora Guzmán tenha dito na inauguração que o projeto “ainda poderia suprir mais casas e o sistema de iluminação pública”, a usina segue em sua “fase inicial” dois anos depois.
O Dialogue Earth visitou a região e tentou acessar a usina, mas não foi autorizado a entrar.
Avanço lento da transição energética
Entre 2005 e 2009, no âmbito do programa Semeando Luz, foram instalados 850 sistemas solares em escolas, unidades de saúde, centros comunitários e postos fronteiriços em comunidades isoladas da Venezuela. Além disso, segundo o governo, o acesso à eletricidade foi expandido para 1,9 mil moradias, 300 estações de tratamento de água, bombas de água e unidades de dessalinização.
O programa atendeu pouco mais de 200 mil pessoas em 932 comunidades que não tinham acesso à rede elétrica. Entre 2009 e 2011, o Semeando Luz instalou dois mil sistemas fotovoltaicos. Nos dois anos seguintes, apenas 200 novos sistemas solares foram instalados e, finalmente, apenas 50 em 2013. A queda dos preços do petróleo pôs fim ao programa.
Isso coincide com o abandono de grandes projetos de transição energética, como os parques eólicos de Paraguaná, La Guajira e Margarita. Após bilhões de dólares em investimentos, muitas instalações foram abandonadas. O mesmo aconteceu com o parque solar instalado em 2015 por uma empresa chinesa na ilha caribenha de Los Roques: o governo anunciou em 2023 que reativaria a usina após oito anos de abandono, mas ela segue sem operação.
A queda do investimento chinês na Venezuela também contribuiu para esse fracasso: o país asiático suspendeu novos investimentos e empréstimos na Venezuela em 2016. Um relatório da plataforma jornalística Connectas revelou que 17 projetos chineses, com um investimento de US$ 22 bilhões, não cumpriram seus objetivos.
Um relatório da Transparência Venezuela revelou que, até o fim do ano passado, isso também foi visto em relação aos projetos chineses no setor venezuelano de combustíveis fósseis: das oito joint ventures de petróleo e gás com capital chinês, apenas duas seguem produzindo, mas muito abaixo das metas, observou o documento.
Painéis chegam a El Vigía
Em abril deste ano, Marielys Sacipa, da Corpoelec Mérida, concessionária estatal das usinas, informou pelas redes sociais que especialistas chineses da Green Full haviam retornado a El Vigía onde serão instalados os painéis solares, processo que pode demorar “vários meses”.
Em 29 de maio, Sacipa publicou um vídeo mostrando vários caminhões que, de acordo com ela, transportavam 94 mil painéis solares a serem instalados na usina. Porém, faltam informações sobre sua produção e instalação. O governo havia prometido produzi-los em solo venezuelado, na Unidade Venezuelana de Energias Renováveis, fábrica local de painéis solares e turbinas eólicas. Mas isso não pode ser confirmado.
A produção dessa fábrica é tão pequena que, para cumprir as promessas do novo parque solar de Mérida, será necessário importar painéis, segundo a presidente do Conselho Venezuelano de Energias Renováveis, Ariadne Serrano, e reportagem da Climate Tracker.
Após as eleições regionais de maio, Mérida agora tem um novo governador: Arnaldo Sánchez, que pode dar sequência aos planos anteriores de instalar um reator nuclear na região andina com apoio de China e Rússia.
O que parece certo é que os apagões vão continuar na Venezuela. Em maio de 2025, expirou a licença de operação da petrolífera americana Chevron, e o governo dos Estados Unidos ordenou sua retirada do país sul-americano. Além de gerar uma perda de US$ 150 a US$ 200 milhões ao mês, aumentando a pressão sobre a inflação e a taxa de câmbio, isso também pode reduzir drasticamente o suprimento de combustíveis e outros produtos essenciais para o funcionamento das usinas a gás. Outras empresas que exploram sete poços de petróleo também suspenderam suas atividades, principalmente devido às sanções impostas pelos EUA.
Em Mérida, há uma oportunidade de gerar energia solar sustentável e limpa sob o céu andino, mas resta saber se esses planos cairão, mais uma vez, no esquecimento.


