Justiça

Corte Interamericana cria precedente legal para combate à crise climática

Parecer da Corte IDH sobre as obrigações dos Estados americanos no combate às mudanças climáticas reconhece direito a um clima saudável e alimenta esperança de ambientalistas
<p>Tecelãs da Reserva Indígena Arhuaco, na Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia. ‘Não há direitos humanos sem a Mãe Terra’, disse a ministra colombiana de Meio Ambiente, Lena Estrada Añokazi, após publicação de parecer consultivo sobre proteção dos direitos humanos diante da emergência climática e ambiental (Imagem: <a href="https://flic.kr/p/2qS2L1R">Andrea Puentes</a> / <a href="https://www.flickr.com/people/197399771@N06/">Presidência da Colômbia</a>, <a href="https://creativecommons.org/publicdomain/mark/1.0/deed.pt-br">PDM</a>)</p>

Tecelãs da Reserva Indígena Arhuaco, na Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia. ‘Não há direitos humanos sem a Mãe Terra’, disse a ministra colombiana de Meio Ambiente, Lena Estrada Añokazi, após publicação de parecer consultivo sobre proteção dos direitos humanos diante da emergência climática e ambiental (Imagem: Andrea Puentes / Presidência da Colômbia, PDM)

Países e juristas celebraram a publicação de um parecer histórico da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no último 3 de julho: o documento de 234 páginas define as responsabilidades legais de Estados e empresas para proteger os direitos humanos diante da crise climática e ambiental.

O parecer consultivo é um instrumento jurídico que oferece uma interpretação legal a um conjunto de leis e tratados internacionais sobre um determinado tema. Embora tecnicamente não tenha caráter vinculante, ou seja, com força de lei, ele pode influenciar decisões judiciais e negociações nas Américas.

O entendimento da Corte abre um “caminho importante” para enfrentar a crise climática, ao definir parâmetros para políticas nacionais, afirmou Viviana Krsticevic, diretora-executiva do Centro para a Justiça e o Direito Internacional (Cejil), organização que apoiou o pedido de parecer feito por Colômbia e do Chile em 2023. A decisão também pode embasar cobranças por mais ambição na conferência climática COP30, no Brasil.

Direito a um clima saudável

A Corte IDH foi criada para interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pela maioria dos 35 membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). Com isso, seu novo parecer se aplica a todos os países da organização, inclusive EUA e Canadá, que não reconhecem sua jurisdição.

Os magistrados reafirmaram o direito a um ambiente saudável e, pela primeira vez, esclareceram que isso inclui o direito a um “clima saudável“, definido como “um sistema climático livre de interferências antropogênicas perigosas para os seres humanos e toda a natureza”.

O documento detalha obrigações legais dos Estados para a defesa dos direitos humanos diante das mudanças climáticas, incluindo como os direitos à vida, saúde, água potável, educação e trabalho — válidos para as gerações presentes e futuras.

Os Estados devem implementar medidas “urgentes e eficazes” de mitigação e adaptação aos danos climáticos e ambientais, garantindo reparações quando esses direitos forem violados. Conforme o parecer, os países não podem regredir em suas políticas climáticas sem fortes justificativas para isso.

Juíza Nancy Hernández López, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Juíza Nancy Hernández López, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, lê o resumo do parecer consultivo nº 32/2025, que define as obrigações dos Estados na proteção aos direitos humanos diante da crise climática e ambiental (Imagem: Corte IDH / Flickr, CC BY-SA)

Responsabilização do setor de combustíveis fósseis

Para emitir o novo parecer, a Corte Interamericana, sediada na Costa Rica, recebeu um número recorde de mais de 260 contribuições e conduziu uma série de audiências em Barbados e nas cidades brasileiras de Brasília e Manaus, das quais participaram cidadãos, representantes de estados, órgãos regionais, instituições acadêmicas e grupos da sociedade civil. O objetivo desse processo era escutar um conjunto amplo de vozes de atores afetados ou vulneráveis aos eventos climáticos extremos.

O resultado foi bastante aguardado por ativistas ambientais e dos direitos humanos, porque cria uma importante jurisprudência para cobrar ações mais rígidas dos Estados no combate às mudanças climáticas.

Os governos de Chile e Colômbia comemoraram o resultado do parecer da semana passada. Em uma declaração conjunta, os países disseram que o documento “constitui um marco jurídico internacional para a proteção dos direitos humanos”. Além disso, reafirmaram seu compromisso colaborativo no combate à emergência climática “por meio do desenvolvimento de padrões jurídicos claros que orientem respostas mais eficazes para esse desafio global”.

Entre outros assuntos, o parecer destacou a importância do Acordo de Escazú, tratado ambiental da América Latina e do Caribe que entrou em vigor em 2021. Esse acordo busca melhorar o acesso à informação, combater os crimes contra ativistas ambientais e garantir direitos mais firmes para que as comunidades sejam consultadas previamente sobre os impactos de grandes projetos que afetem seus modos de vida.

O parecer consultivo também estabeleceu responsabilidades legais para que as empresas minimizem seus impactos sobre o clima, ações que devem ser devidamente regulamentadas pelos Estados. O texto destacou a exploração, a extração, o transporte e o processamento de combustíveis fósseis, a fabricação de cimento e a agroindústria como os maiores emissores de gases de efeito estufa. Além disso, o parecer afirmou que os Estados devem aprovar leis para que as corporações e conglomerados transnacionais sejam totalmente responsabilizados pelas emissões de suas subsidiárias.

A crise climática não é questão de nicho ou de um único setor: é uma crise sistêmica que atravessa todos os direitos e assim deve ser tratada pelos Estados
Laura Restrepo Alameda, ativista da Climate Action Network Latin America

Os Estados também têm o dever de garantir uma transição justa para uma sociedade com uma matriz energética mais limpa, na qual os direitos humanos ainda sejam salvaguardados, disse o tribunal. Esse é um problema particularmente urgente na América Latina e no Caribe, onde a mineração de minerais essenciais para tecnologias de transição, como veículos elétricos, provoca sérios problemas socioambientais.

O parecer da Corte Interamericana também reconheceu pela primeira vez a natureza enquanto sujeito de direitos, afirmando que os Estados têm o dever de garantir a proteção, restauração e regeneração dos ecossistemas.

Nesse ponto, o advogado brasileiro Marcelo Azambuja, especialista em direito internacional dos direitos humanos, alertou ao Dialogue Earth que, na prática, “a Corte IDH não criou mecanismos para efetivar a defesa dos interesses da natureza”. Segundo Azambuja, “qualquer organização da sociedade civil reconhecida na região pode apresentar um caso sobre o tema”, mas não fica claro quem tem a prerrogativa para representar a natureza ou o sistema climático na esfera judicial — algo que pode abrir brechas para que grupos ligados a setores poluentes ou ambientalmente irresponsáveis, por exemplo, “sequestrem certos casos antes de outras organizações com legitimidade”.

‘Mais do que um avanço jurídico’

Em uma postagem no X (antigo Twitter), a ministra colombiana de Meio Ambiente, Lena Estrada Añokazi, disse que o parecer foi “histórico”. “Isso confirma o que os povos indígenas têm dito há séculos: não há direitos humanos sem a Mãe Terra”, destacou. “Não é apenas um avanço jurídico: é uma reafirmação da vida”. 

O novo parecer marca um momento decisivo para a região, ressaltou Laura Restrepo Alameda, ativista da Climate Action Network Latin America. “Ele nos lembra que a crise climática não é uma questão de nicho ou de um único setor: é uma crise sistêmica que atravessa todos os direitos e assim deve ser tratada pelos Estados”. 

Jovens ativistas que participaram das audiências perante o tribunal também comemoraram o reconhecimento explícito de que a crise climática tem um impacto desproporcional sobre as crianças e as gerações futuras. 

“A Corte respeita o princípio intergeracional”, disse Mariana Campos Vega, coordenadora da frente de América Latina na organização Juventude Mundial pela Justiça Climática. “Isso não teria sido possível sem a participação de crianças e jovens. O tribunal reconheceu nossas vozes”.

Clima em ações judiciais

A Corte IDH é o segundo tribunal internacional a produzir um parecer consultivo relacionado ao clima — e, até o momento, o único focado em direitos humanos. Enquanto isso, a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos já iniciou um processo parecido.

O Tribunal Internacional do Direito do Mar foi o primeiro a publicar um parecer consultivo sobre o tema no ano passado. Esse tribunal concluiu que a poluição dos gases de efeito estufa está destruindo os ecossistemas marinhos e que os Estados têm a responsabilidade legal de controlar as emissões. O parecer tem obtido repercussões ainda incipientes para os litígios climáticos e negociações diplomáticas.

A Corte Internacional de Justiça (CIJ), cuja função é harmonizar e conectar o direito internacional, deve publicar seu parecer em 23 de julho. Ela realizou audiências ao longo de duas semanas em dezembro passado

Ralph Regenvanu, ministro de Mudanças Climáticas de Vanuatu, que liderou a solicitação à CIJ e foi o primeiro país fora das Américas a enviar uma contribuição escrita à Corte IDH, disse que todos os tribunais regionais e internacionais têm um papel importante a desempenhar no avanço da justiça climática.

“Juntos, eles podem pavimentar o caminho para uma abordagem mais integrada do direito internacional, abordando os direitos humanos e corrigindo as históricas injustiças climáticas sofridas pelo Sul Global”, concluiu.

Juan Ortiz colaborou com esta reportagem.

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