Em novembro de 2024, o jornalista Juan Pablo Spinetto, colunista da Bloomberg, classificou a situação econômica da Bolívia como “trágica”. Citando números que mostram a escassez de reservas de dólares e de combustível, Spinetto descreveu o futuro do país em três palavras: “desvalorização, inadimplência e caos”.
A coluna de Spinetto repercutiu na imprensa boliviana — porém, nos cinco meses seguintes, suas previsões se provaram corretas. Embora não tenha havido uma desvalorização oficial da moeda — já que a taxa de câmbio segue fixada em 6,96 pesos bolivianos (BOB) por dólar —, bancos passaram a impor taxas exorbitantes, e no mercado formal de criptomoedas da Bolívia, o dólar chegou a valer 12 BOB.
A origem da crise está no “declínio do setor de gás natural”, explicou o economista Gonzalo Chávez ao portal Infobae em setembro do ano passado. Em 2014, o Estado arrecadou US$ 5,5 bilhões com sua exportação. Desde então, a produção vem caindo, e a receita chegou a US$ 1,6 bilhão em 2024. Isso se deve à diminuição das reservas nacionais de gás e sua consequente queda nas vendas para seus principais mercados: Brasil e Argentina.
Outros fatores que agravaram a crise econômica foram a manutenção da taxa de câmbio fixa e o aumento da dívida pública na garantir os subsídios a combustíveis e alimentos.
Desde 2004, o governo boliviano subsidia o preço dos combustíveis. Diesel e gasolina são comprados a preços internacionais, a cerca de US$ 1,2 por litro, mas são vendidos no mercado interno ao equivalente a US$ 0,54 por litro, em média. O Estado cobre a diferença, arcando com os custos crescentes dos combustíveis.
Como resultado, desde 2023 o país enfrenta uma escassez de dólares que se agravou ao ponto de o governo não conseguir mais fornecer combustíveis à população, por não ter como pagar as empresas fornecedoras.
Em seus quatro anos no cargo, a resposta do presidente Luis Arce foi investir na construção de usinas de biodiesel para reduzir a dependência do mercado externo e, logo, dos subsídios. Arce também retomou planos nacionais de explorar suas vastas reservas de lítio, para aproveitar o boom de demanda pelo mineral impulsionado pela transição energética global. Ele anunciou ainda a abertura de novos poços de petróleo, inclusive em parques nacionais, na tentativa de reverter o declínio da produção boliviana.
É um padrão que se repete e nós, povos indígenas, pagamos um custo alto: a perda de nossos territórios e meios de subsistênciaRuth Alipaz, líder indígena Uchupiamona
Até o momento, os resultados não foram os esperados: a única usina de biodiesel do país está longe de poder substituir as importações de combustível. Os projetos de lítio ainda não conseguiram decolar, devido a preocupações com sua viabilidade econômica e impactos ambientais. Já a exploração de petróleo enfrenta resistência devido à alta vulnerabilidade de ecossistemas próximos às reservas.
O governo boliviano afirma que esses projetos ajudarão a aumentar as receitas, mas os povos indígenas do país alertam que serão eles, como sempre, os que vão pagar o preço.
Recursos naturais: saída para a crise?
Para Ruth Alipaz, líder indígena do povo Uchupiamona, da Amazônia boliviana, a resposta da gestão Arce à crise foi a mesma de outros governos.
“Eles recorrem à extração de recursos naturais”, disse ela ao Dialogue Earth. Alipaz é conhecida pela defesa de seu território contra a mineração ilegal de ouro, a contaminação dos rios por mercúrio e a construção de barragens hidrelétricas em áreas sensíveis. Ela lembra que, antes da criação do sistema de áreas protegidas em 1992, houve uma sequência de atividades extrativistas na região amazônica. Ainda na década de 1990, a região enfrentou a extração de petróleo, mineração de estanho e extração de madeira e borracha; nos anos 2000, foi o gás natural; e, agora, o desafio é a volta da mineração de ouro e a introdução da palma de óleo.
“É um padrão que se repete e nós, povos indígenas, pagamos um custo alto: a perda de nossos territórios e meios de subsistência”, afirmou Alipaz.
Na Bolívia, a mineração tem sido uma das principais fontes de renda desde a época colonial. Porém, os royalties pagos ao Estado boliviano — 3% da receita, segundo a lei de mineração do país — não trazem poucos benefícios à economia local. Uma das razões é que 55% da produção mineral está nas mãos de cooperativas. Nenhuma delas paga royalties, porque são consideradas organizações autônomas sem fins lucrativos e, portanto, não são obrigadas a pagar impostos sobre os lucros.
“Isso deixa um rastro de danos ambientais, contaminação, desmatamento e violação de direitos”, afirmou Alfredo Zaconeta, pesquisador no Centro de Estudos para o Desenvolvimento Trabalhista e Agrário.
Riqueza financeira vs. riqueza natural
Para Zaconeta, a mineração é uma atividade da qual dificilmente o país vai conseguir “abrir mão”. Porém, ele acrescenta que os rumos do setor devem ser discutidos mais amplamente por toda a sociedade e, principalmente, “pelas pessoas afetadas em áreas onde a mineração é mais prejudicial do que benéfica”.
Ativistas, cidadãos e povos indígenas criticam projetos de exploração pela baixa participação popular nos projetos, a falta de acesso à informação e a abundância de informações enganosas. Isso gera um sentimento de desconfiança e rejeição entre as comunidades indígenas e agrícolas, tanto dentro quanto fora das áreas ricas em minerais, como as salinas de Uyuni e Pastos Grandes, em Potosí, e Coipasa, em Oruro.
O que nos preocupa são os impactos na água e a presença de uma usina que demanda o uso de produtos químicosLeonel Ramos, morador da comunidade Mallku Villamar
Essas grandes salinas foram escolhidas pelo governo boliviano para a instalação de usinas que utilizam métodos de extração direta de lítio — componente essencial às baterias de veículos elétricos e dispositivos eletrônicos. Juntas, esses desertos de sal abrigam uma das maiores reservas de lítio do mundo, estimada em 23 milhões de toneladas do mineral.
“O que nos preocupa são os impactos na água e a presença de uma usina que demanda o uso de produtos químicos”, disse Leonel Ramos, morador de Mallku Villamar, comunidade do povo Quéchua em Potosí, sul da Bolívia. Esse local é a porta de entrada para o Salar de Pastos Grandes, que, por sua vez, faz parte de Los Lípez, considerada uma área úmida de importância global. Alguns estudos já avaliaram o potencial impacto nos recursos hídricos da zona, mas não houve desdobramentos. “Até agora não recebemos os resultados”, lamentou Ramos.
A Bolívia criou vários marcos legais para a proteção ambiental, dos povos indígenas e de seus direitos à informação e consulta prévia. Entre elas, a Lei de Meio Ambiente estabelece salvaguardas ambientais e a participação de comunidades tradicionais nas discussões sobre o desenvolvimento e uso de recursos naturais em seus territórios. Já a Lei para a Proteção de Nações e Povos Indígenas em Situações de Alta Vulnerabilidade se concentra nas proteções a grupos que enfrentam ameaças a seu território e modos de vida. A Bolívia também ratificou o Acordo de Escazú, tratado latino-americano sobre acesso à informação, participação pública e acesso à justiça em temas ambientais.
Em novembro, a mineradora russa Uranium One Group assinou um contrato para construir uma usina industrial de carbonato de lítio em Pastos Grandes, pelo valor de US$ 970 milhões. Outro acordo foi assinado com a Hong Kong CBC — consórcio chinês formado pela gigante de baterias CATL e sua subsidiária Brunp, além da empresa de mineração CMOC — que deverá construir duas outras usinas no Salar de Uyuni. Por enquanto, esses contratos estão parados no Congresso boliviano, aguardando a documentação “completa e legalizada” do governo, segundo informações da imprensa local.
Sara Crespo, diretora da organização Probioma, especializada em monitoramento socioambiental, explicou que os benefícios econômicos da mineração geralmente não chegam às comunidades afetadas. “Qual é o departamento com a maior produção de mineração e, ao mesmo tempo, um dos mais pobres do país?”, questionou Crespo, fazendo alusão à contradição vivida em Potosí desde a época colonial.
‘Eles dividem nossas comunidades’
Tanto os líderes indígenas quanto os pesquisadores consultados pelo Dialogue Earth concordam que a atual crise econômica boliviana está gerando divisão e até mesmo violência entre os moradores das comunidades indígenas e agrícolas.
“Isso tornou mais agressiva a pressão da mineração, dos combustíveis fósseis e do avanço da fronteira agrícola sobre os territórios indígenas”, disse Crespo.
Ruth Alipaz, do povo Uchupiamona, disse que essa situação já foi discutida pela Coordenação Nacional de Defesa dos Territórios Indígenas Campesinos e Áreas Protegidas da Bolívia (Contiocap).
“Agora somos vistos como aqueles que buscam travar o desenvolvimento econômico, e eles nos obrigam a brigar internamente, porque alguns cogitam aceitar essas ofertas”, disse Alipaz, referindo-se às promessas de royalties. “Mas, na realidade, eles [o governo e as empresas] apenas acendem as esperanças de algo que nunca virá”.
O outro grande problema, não só para os povos indígenas, mas também para as comunidades agrícolas, é a falta de acesso à informação.
Desde a promulgação da nova Lei de Mineração da Bolívia, em 2014, o acesso à informação tem sido restringido. Até 2018, explicou Crespo, era possível acessar os dados completos sobre a situação da mineração no país, com mapas atualizados. Tudo isso era então interpretado por especialistas e explicado às comunidades indígenas e campesinas, em linguagem não técnica, para que pudessem tomar uma decisão livre e informada sobre a aceitação ou rejeição da entrada de novas mineradoras em seus territórios.
“Em 2023, a Autoridade Administrativa Jurisdicional de Mineração emitiu uma resolução pela qual se decidiu não fornecer nenhuma informação”, disse Crespo. Em um documento administrativo ao qual o Dialogue Earth teve acesso, as razões técnicas para isso são detalhadas, mas as causas não são especificadas. “Não há explicação. Há relatórios técnico-legais, mas não há argumentação sobre o motivo”, acrescentou.
Lutas de ativistas ambientais
Além desses desafios no acesso à informação, alguns especialistas e moradores relataram uma situação de perseguição aos líderes indígenas e agricultores.
Foi o que aconteceu em Tres Marías, comunidade rural no município de Yanacachi, em La Paz, onde os produtores de flores foram desalojados por mineradoras.
“Eles [os mineiros] construíram uma comunidade dentro da nossa comunidade para ter um território para explorar”, denunciou Mary Catacora, uma das moradoras.
Desde 2021, a Contiocap registrou 272 ataques ou ameaças a ativistas ambientais na Bolívia — o que inclui desde processos por difamação até intimidações. Entre esses ativistas afetados estava Catacora, que liderou os protestos contra as cooperativas de mineração na comunidade em novembro passado, impedindo-as de entrar nas áreas de mineração e acessar as estradas construídas ilegalmente no território. Ele foi um dos vários membros da comunidade agredidos física e verbalmente pelos grupos mineradores.
Este ano, autoridades emitiram mandados de prisão contra moradores da comunidade após uma cooperativa ter movido uma ação legal em razão dos protestos — algo que a Contiocap considera “arbitrário” e “sem o devido processo legal”.
A família Catacora, assim como os demais habitantes de áreas afetadas pela mineração, disse que seguirá lutando, pois sua causa não se restringe à terra, mas também envolve os meios de subsistência da comunidade.
Enquanto isso, os preços dos alimentos sobem em todo o país, e a evasão escolar cresce pela falta de combustível para o transporte dos estudantes.
“Estamos preocupados com o dia a dia: o que vamos comer? O que vamos dar aos nossos filhos? Onde vamos conseguir água? Onde vamos conseguir combustível?”, questionou Alipaz.


