<p>Eclusas do lago Gatún, no Canal do Panamá, próximas à cidade de Colón e à costa do Atlântico. A Autoridade do Canal propõe a criação de um novo reservatório em resposta às secas que prejudicaram o trânsito de navios pela hidrovia nos últimos anos (Imagem: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)</p>
Negócios

Comunidades resistem a nova barragem no Canal do Panamá

Reservatório planejado para abastecer canal ameaça inundar áreas próximas ao rio Índio e forçar a realocação de comunidades afetadas, que se opõem ao projeto

A duas horas a oeste da Cidade do Panamá, 12 mil pessoas temem ser expulsas de suas terras, que estão na mira de um projeto de barragem para garantir o abastecimento de água no Canal do Panamá. O plano foi apresentado pelo governo panamenho e prevê a inundação do território de diversas comunidades.

“Diga ao presidente para nos deixar em paz. Será que ele tem noção de tudo o que vamos perder? A terra, as plantações, as casas? Estamos preocupados”, disse Elizabeth Delgado, moradora de Limón de Chagres, comunidade às margens do rio Índio — um dos alvos do projeto do reservatório. Delgado e outras 500 famílias próximas ao rio encaram a possibilidade de ter suas casas totalmente submersas.

A demanda para a construção da barragem foi surgindo à medida que o fluxo comercial do Canal do Panamá aumentava nas últimas décadas. Além disso, é uma resposta às secas prolongadas que afetam as operações da hidrovia, causando interrupções em uma rota usada por 3% do comércio marítimo global.

Nos primeiros meses de 2024, quando um dos anos mais secos já registrados no país levou os níveis de água do canal a uma baixa histórica, a rota interoceânica operou com 63% de sua capacidade normal, explicou Jorge Luis Quijano, ex-administrador da Autoridade do Canal do Panamá (ACP). Em 2023, pela primeira vez, a seca intensa forçou a redução da capacidade máxima para o trânsito diário de navios, passando de 37 para 22 embarcações.

Troncos de árvores submersas no lago Alajuela, Panamá
Troncos de árvores submersas no lago Alajuela, reservatório artificial criado em 1935 para abastecer o Canal do Panamá. Desde 2023, fortes secas na região têm levado as autoridades do canal a limitar a passagem diária de navios (Imagem: Pich Urdaneta)
Navios passam por eclusas de Miraflores, perto da Cidade do Panamá
Eclusas de Miraflores, perto da Cidade do Panamá. A passagem de cada navio pelo canal requer o uso de 196 milhões de litros de água. Para aumentar a capacidade do canal, foi proposta a construção de um novo reservatório no rio Índio (Imagem: Pich Urdaneta)

O sistema do Canal do Panamá é composto por uma série de vias navegáveis e eclusas — estruturas que funcionam como elevadores de barcos — conectando as costas do Atlântico e do Pacífico através do lago artificial Gatún, criado pelo represamento do rio Chagres, e do lago Alajuela, também artificial. Ambos os lagos fornecem água para pouco mais da metade da população panamenha, incluindo municípios como Cidade do Panamá, Arraiján, La Chorrera e Colón.

Agravada pelo fenômeno climático El Niño, a seca de 2023-2024 deixou os lagos com níveis extremamente baixos, representando um desafio para o abastecimento da população e o trânsito de navios, cuja passagem pelo sistema de eclusas requer o uso de 52 milhões de galões de água (ou 196 milhões de litros) por embarcação. 

A travessia pelo Canal do Panamá também aumentou exponencialmente desde que o lago Alajuela foi criado, em 1935: naquele ano, 6.369 navios passaram pelo canal; já em 2022, antes da crise hídrica, foram 14.274

Além de afetar uma importante fonte de renda para o Panamá, a seca e as restrições forçaram as empresas de navegação a buscar rotas alternativas, incluindo o Canal de Suez, o que aumentou os custos, os atrasos e as emissões de carbono.

Diante das projeções incertas sobre novas secas e chuvas, Ricaurte Vásquez, administrador da hidrovia, explicou que o projeto para aumentar a capacidade de água do canal envolve a criação de um reservatório no rio Índio que cobriria uma área de aproximadamente 46 quilômetros quadrados. A construção e o alagamento da barragem — obras que ainda dependem do aval das comunidades afetadas — têm previsão de começar em 2027 e ser concluída em até seis anos, a um custo estimado de US$ 1,5 bilhão, dos quais US$ 400 milhões seriam destinados para indenizações e projetos sociais.

Mapa mostra localização de comunidades potencialmente afetadas por projeto de barragem no rio Índio, no Panamá
(Fonte de dados: Autoridade do Canal do Panamá / Mapa: Dialogue Earth)

“Estimamos que cerca de dois mil cidadãos poderiam ser diretamente afetados por esse projeto, embora toda a área do rio Índio tenha aproximadamente 12 mil pessoas”, reconheceu Vásquez em uma recente coletiva de imprensa.

Comunidade teme pelo futuro

Ao longo da estrada que leva à comunidade de Limón de Chagres, na província de Colón, a duas horas de carro da capital panamenha, há várias faixas pintadas à mão que descrevem o sentimento dos locais: “rios sem barragens, comunidades vivas”, “respeitem nossa terra” e “não aos reservatórios do rio Índio”.

A ACP atualmente trabalha no recenseamento das áreas que serão afetadas e na consulta aos moradores. Recentemente, também foi aprovado o financiamento para cobrir as indenizações, o reassentamento e o apoio financeiro das comunidades.

Algumas dessas ações já devem começar este ano: como muitos moradores não têm títulos oficiais de suas propriedades, o governo quer ajudar na regularização desses documentos, para viabilizar a compensação financeira pelas terras afetadas e a realocação da população. Nesse primeiro momento de diálogo com as comunidades, ainda não foi divulgada uma data estimada para o processo de licitação das obras.

Fiaxa pendurara em árvores diz ‘respeitem nossa terra’ do lado de fora de uma casa
Na estrada rumo à comunidade de Limón de Chagres, na província de Colón, podem ser vistas faixas com mensagens contrárias à construção de uma barragem na zona — como esta que diz ‘respeitem nossa terra’ (Imagem: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

Com a construção da barragem, a superfície do rio Índio se expandiria para formar um reservatório artificial em três províncias ao longo de seus 98 quilômetros de extensão. O projeto também prevê a criação de um túnel para transferir água à bacia do Canal do Panamá, onde estão os lagos Gatún e Alajuela, que abastecem a operação da hidrovia.

A ACP insiste que a construção do reservatório garantirá o fornecimento de água para a população e a operação do canal por um período de 50 anos. Ela afirma ainda que esse processo será realizado por meio do diálogo com as pessoas afetadas, oferecendo-lhes garantias de melhores condições de vida.

Apesar das promessas, a raiva e a frustração dos moradores de áreas potencialmente inundadas são evidentes. Em alguns trechos de nossa viagem, nos locomovemos de canoa e caminhamos cerca de 30 minutos por estradas de terra, com lama muitas vezes até os joelhos — a única maneira de chegar a algumas comunidades mais remotas, como Pueblo Nuevo. À medida que avançamos, fomos atraídos pelo som das vozes de uma casa no alto de uma colina.

homem de camisa listrada e calças jeans caminha por estrada de terra e barro
A estrada para a comunidade de Pueblo Nuevo é de difícil acesso. Muitas comunidades da bacia do rio Índio vivem em locais isolados e carecem de infraestrutura básica (Imagem: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

“Vão procurar outra coisa para fazer!” e “não queremos que vocês passem por aqui”, gritaram alguns moradores indignados quando um jovem indígena, montado a cavalo, se dirigiu ao nosso encontro na trilha.

À beira da estrada de terra, colada em um portão de madeira desgastado, havia uma nota escrita à mão: “Proibida a entrada da ACP — propriedade privada — não concederemos a licença”. A placa estava perto de outra com um desenho que parecia uma arma, ao lado da palavra “perigo”.

Nós nos apresentamos como repórteres do Dialogue Earth e explicamos que estávamos em busca de informações, ao que o jovem no cavalo respondeu duramente: “os jornalistas se venderam”, disse ele, acrescentando que a comunidade não queria “diálogo”. Após explicar que se tratava de um meio de comunicação internacional, ele finalmente concordou em conversar.

“O administrador da ACP, Ricaurte Vásquez, disse que 90% da comunidade é a favor da barragem, o que é falso”, afirmou Abdiel Sánchez, 28 anos, morador de Pueblo Nuevo.

Depois desse primeiro contato, a comunidade convidou nossa equipe para a comemoração do aniversário de uma menina de 6 anos — celebração que havia sido adiada porque os moradores estavam ocupados espalhando cartazes e faixas contrárias à construção do reservatório por aquela zona.

(Vídeo: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

Entre os presentes, estava Artemio Sánchez, produtor rural de 52 anos e presidente do conselho de desenvolvimento social de Pueblo Nuevo. De acordo com ele, a comunidade não recebeu “qualquer ajuda do governo, muito menos da [autoridade] do canal, nem mesmo para comprar uma caixa de fósforos”.

Os moradores da comunidade disseram que foram poucos os encontros que tiveram com as autoridades do país. Por isso, sempre que alguém estranho entra na área, há um temor de que seja um funcionário da ACP encarregado de fazer o censo das comunidades, pois eles sabem que os primeiros títulos de propriedade serão entregues em 2025.

“Gritamos com você porque achávamos que era da ACP. Não queremos que eles andem por aqui sem nossa permissão, tirando fotos da escola e das igrejas, sabendo que não concordamos com seu projeto”, explicou Sánchez.

“Se o projeto for concretizado, esperamos não ser deixados para trás”, disse Nery Sáenz, outra moradora que participava da festa. Ela mencionou a construção do lago Gatún, que também afetou muitas famílias. “Nada [do que tinham] foi reconhecido formalmente, e elas foram expulsas de suas terras. Até agora, não receberam nada”.

“Tememos que essa situação se repita com a gente”, explicou Sáenz.

(Vídeo: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

A inundação do lago Gatún foi concluída em 1913 para permitir as primeiras operações do canal. Registros históricos mostram que em 1912, quando a Zona do Canal do Panamá era administrada pelos Estados Unidos, ocorreu a primeira expulsão de populações próximas à hidrovia, seguindo um decreto do então presidente dos EUA, William Taft, justamente para a construção do reservatório, que na época era o maior lago artificial do mundo.

O livro Erased: The Untold Story of the Panama Canal (Apagado: a história não contada do Canal do Panamá, em tradução livre), da historiadora Marixa Lasso, descreve realocações forçadas como medidas racistas do governo dos EUA contra uma população majoritariamente afrodescendente. Os norte-americanos tentaram justificar as operações no Panamá com base em critérios militares e de segurança nacional.

Terra e vida na comunidade

Para a agricultora Elizabeth Delgado, o novo projeto de infraestrutura na região significa viver na incerteza. Ela contou que começou a ter problemas para dormir desde que soube da proposta de inundação da área, cerca de três meses antes de nossa visita em novembro.

Elizabeth Delgado utiliza caixa d’água na comunidade Limón de Chagres
Elizabeth Delgado utiliza caixa d’água na comunidade Limón de Chagres. Moradores dependem do rio Índio, sua principal fonte de água potável (Imagem: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

“Vivemos da terra”, disse Elizabeth, parada na porta de uma casa de madeira, com a pintura branca lascada. Lá, junto a seu marido e sete filhos, sobrevive da agricultura, criando galinhas e cultivando alimentos como inhame, mandioca, pimentão, coentro e cebola. A família mora em Limón de Chagres há 18 anos.

O rio Índio é sua principal fonte de água potável, já que a zona não conta com um sistema de distribuição. Os moradores da bacia usam canos para coletar água do rio ou de córregos, além de extrair água de poços ou caminhar longas distâncias com baldes e panelas cheias à tiracolo. Também não há eletricidade, nem outros serviços básicos.

Com tudo o que está acontecendo, as crianças estão com medo, disse a professora Aurelia Castillo, que há nove anos dá aula para crianças na escola em Pueblo Nuevo, outra comunidade ameaçada pela barragem. Castillo acrescentou que os estudantes a partir do sexto ano precisam viajar para estudar em uma comunidade próxima chamada Coquillo, também na mira do reservatório.

“Onde nossos filhos vão estudar?”, questionou a professora.

(Vídeo: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

Impactos ambientais e alternativas

O rio Índio faz parte do corredor biológico Mesoamericano, ecossistema que conecta áreas da América Central, do Panamá e do sul do México, funcionando como um refúgio para espécies de macacos, crocodilos e várias plantas endêmicas. Esse corredor ecológico pode ser severamente fragmentado com a construção do reservatório.

Isaías Ramos, biólogo da organização CIAM Panamá, explicou que a execução do projeto representa um impacto ambiental significativo. Porém, segundo ele, os efeitos sociais seriam ainda mais graves, já que muitas comunidades potencialmente afetadas ainda não foram devidamente informadas sobre o projeto, o que violaria o Acordo de Escazú. Ratificado pelo Panamá em 2020, o tratado promove a transparência e o acesso à informação ambiental na América Latina e no Caribe.

Por sua vez, a ACP publicou relatórios de reuniões com a população do rio Índio e afirmou manter um “contato permanente” e mecanismos de consulta com as comunidades. Segundo a autoridade, foram realizadas mais de 40 reuniões com cerca de dois mil moradores até setembro de 2024.

árvores em torno do rio Índio, no Panamá
Rio Índio é cercado por vegetação exuberante e se encontra no corredor biológico Mesoamericano, ecossistema que conecta áreas da América Central, do Panamá e do sul do México. O corredor pode ser severamente fragmentado com a construção do novo reservatório (Imagem: Pich Urdaneta / Dialogue Earth)

Embora a água seja abundante no rio Índio, seu fluxo tem diminuído em algumas áreas, dificultando o transporte. Isso levou o Conselho Nacional da Água do país a propor uma alternativa ao reservatório. A ideia seria canalizar a água do lago Bayano, cem quilômetros a leste da Cidade do Panamá. Guillermo Torres, presidente da entidade, afirmou que o projeto do rio Índio seria apenas uma solução temporária, dadas as variações sazonais das chuvas e a possibilidade de outras secas afetarem o enchimento do reservatório. Ele também afirmou que, se o projeto tivesse sido construído em 2006, outra fonte seria necessária até 2025. O reservatório de Bayano, segundo ele, poderia garantir água até 2075, o que faria dela uma opção mais viável a longo prazo.

A ACP também está considerando outros reservatórios, como os do rio Coclé del Norte, na região central do país, e do Caño Sucio, no oeste. 

Em 2024, uma decisão da Suprema Corte do Panamá anulou uma lei que havia bloqueado a criação do reservatório do rio Índio e que, desde 2006, restringia o uso da água pelo canal aos limites de sua bacia hidrográfica. A decisão conferiu à ACP o controle sobre recursos hídricos para além de sua bacia hidrográfica e, assim, abriu a possibilidade de construção do reservatório do rio Índio. 

Os moradores de Limón de Chagres e Pueblo Nuevo consultados pelo Dialogue Earth dizem preferir a construção de um duto no lago Bayano — o que, segundo eles, seria menos prejudicial ao ecossistema e às suas comunidades. Os moradores afirmam que se esforçam para preservar o rio Índio e seus arredores, valorizando a tranquilidade e a natureza à sua volta.

Após a aprovação do projeto em 21 de fevereiro por seu conselho de administração, a Autoridade do Canal do Panamá agora tenta estabelecer um diálogo com as comunidades para convencê-las a dar um parecer favorável à barragem. A ACP também pretende concluir o censo do rio Índio até o final de abril. Porém, as discussões devem se estender por um bom tempo, e os protestos nos dias seguintes à decisão enviaram um sinal claro da oposição das comunidades potencialmente afetadas.