Separadas pela Baía de Todos os Santos, a capital baiana de Salvador e a Ilha de Itaparica, conhecida por suas paisagens e tradições ancestrais, mantêm há séculos conexões marítimas. Mas, em 2025, um antigo plano para ligá-las por uma ponte começou a avançar.
Idealizada em 1967, a ponte Salvador-Itaparica deve ser a maior da América Latina sobre a água, com 12,4 quilômetros. Após anos de impasses, o projeto foi retomado com apoio de estatais chinesas, e a sondagem do solo, etapa essencial para a instalação de seus pilares, foi concluída em março.
Porém, mesmo após décadas desde sua idealização, os detalhes do sistema viário que acompanhará a ponte apenas começaram a ser apresentados aos moradores da ilha e já recebem críticas. A região é habitada por comunidades tradicionais pesqueiras, quilombolas e de religiões de matriz africana.
Até o Ministério Público do Estado da Bahia (MPBA) teve dificuldades de acessar os documentos atualizados sobre os impactos socioambientais da obra. Para milhares de pessoas diretamente afetadas, uma sombra paira sobre a proposta.

“A gente só sabe o que vê na TV”, afirma Antônio Salvador dos Santos, radialista aposentado, de 75 anos.
Há 30 anos, Santos comprou um pequeno terreno de 400 metros quadrados na ilha, onde plantou limão, tangerina, goiaba e um sonho: passar ali o resto da vida, com algum espaço para os netos correrem. Ele acredita que sua propriedade fique próxima ao acesso principal da futura ponte, embora ninguém tenha confirmado.
“Sei que mexeram no solo porque vi no jornal, e realmente teve uma movimentação aí atrás”, diz ele, apontando em direção à praia. “Mas ninguém nunca veio mostrar o projeto, falar do traçado, nem governo, nem empresa. Talvez a alça de acesso passe por dentro de minha casa e eu não estou sabendo”.


Segundo Santos, nos últimos meses, só quem vem batendo à sua porta são interessados em comprar o terreno. “Já ofereceram R$ 200 mil, mas sei que não vale tudo isso. Ou seja, é para desconfiar”, diz. Ele afirma que a especulação fundiária está pressionando a ilha, que ainda abriga áreas preservadas de Mata Atlântica e uma rica biodiversidade.
Travessia lenta
Com 246 quilômetros quadrados, Itaparica é uma das maiores ilhas marítimas do Brasil. No centro da Baía de Todos os Santos, tem uma face voltada para Salvador e outra, chamada de contracosta, conectada ao continente pela Ponte do Funil, de 665 metros de extensão.
Fazer a travessia de ferry boat de Salvador até Itaparica, passar pela ilha e atravessar o Funil para encontrar a rodovia BR-101 é uma das principais conexões com o sul e sudeste do estado. Sem essa alternativa, o trajeto rodoviário exige um desvio de aproximadamente 150 quilômetros para contornar a baía.
Mas o sistema do ferry, implantado em 1970, se deteriora a cada ano. Durante o trajeto de 50 minutos, a equipe de reportagem notou, como a população baiana percebe todos os dias, terminais obsoletos, embarcações antigas, com banheiros inutilizáveis. Em períodos de alta demanda, as filas de automóveis costumam ultrapassar quatro horas de espera.

O governo baiano tenta tirar a ponte do papel desde 2009, quando o projeto foi oficialmente lançado. Desde então, no entanto, andou lentamente diante da dificuldade de atrair investidores, de sua complexidade técnica e de entraves ambientais.
A ponte, argumenta o governo, é fundamental para a integração de diferentes regiões do estado, e a obra ajudaria a atrair investimentos em setores como indústria, comércio e mercado imobiliário, além de impulsionar o turismo para a costa do sul do estado.
Chineses à frente do projeto
Em 2019, o consórcio chinês composto pela China Railway 20th Bureau Group Corporation (CRCC20) e a China Construction Communications Company (CCCC) venceu a licitação. A construção será viabilizada por uma concessão patrocinada, um modelo de parceria público-privada em que a empresa lucra com tarifas de usuários e aportes públicos.
Desde o início da década de 2010, a China assumiu protagonismo nas grandes obras de infraestrutura da América Latina, inclusive no Brasil, por meio de empréstimos e da atuação local de suas estatais. Nos últimos anos, porém, esses investimentos vinham recuando.
A Ponte Salvador-Itaparica vai na contramão dessa tendência, com duas gigantes chinesas liderando um projeto de grande porte. Tulio Cariello, do Conselho Empresarial Brasil-China, diz que o interesse chinês no Brasil persiste, mas fatores como a pandemia da Covid-19 e a retração da economia chinesa reduziram o volume de aportes no exterior.
“O Brasil tem gargalos de infraestrutura e logística. A China tem dinheiro e empresas competitivas, então interesse sempre vai haver”, diz Cariello. “Às vezes, o que não tem, no entender dessas companhias, são bons projetos, em que valha a pena investir visando o longo prazo. Certamente eles entendem que o projeto da ponte tem potencial”.
Em 2020, firmou-se um contrato de R$ 7,6 bilhões, sendo R$ 1,5 bilhão de aporte público. Mas o aumento global dos custos da construção civil após a pandemia levou o governo estadual e a concessionária a defenderem a revisão do contrato. Em fevereiro, o Tribunal de Contas da Bahia autorizou um aditivo.

O novo acordo, firmado em junho, adicionou um ano às obras e reduziu um ano do período de concessão. O valor do contrato caiu para R$ 6,9 bilhões, enquanto o aporte público mais que dobrou, para R$ 3,7 bilhões. Além disso, o Estado pagará R$ 5,1 bilhões ao longo de 29 anos à concessionária, elevando seu custo aos cofres públicos para R$ 8,8 bilhões.
Antes do início das obras, a CRCC20 será substituída pela China Civil Engineering Construction Corporation (CCECC), que pertence ao mesmo grupo. Em nota ao Dialogue Earth, a Concessionária Ponte Salvador-Itaparica (CPSI), responsável pelo projeto, garantiu que a troca não afetará a gestão do consórcio. Todas são estatais chinesas.
O projeto prevê, além da ponte, obras viárias em Salvador e Itaparica — entre elas, a Variante, uma via expressa de 18 quilômetros que cruzará a ilha até perto da Ponte do Funil. É desse conjunto de obras viárias que surgem os principais questionamentos.
‘Pior que a ponte é a estrada’
De formas diferentes, essa mesma afirmação sobre a Variante foi feita à reportagem por oito moradores de Itaparica — pescadores, comerciantes, quilombolas, indígenas e marisqueiras, todos nascidos e residentes na ilha.
O temor é especialmente com o traçado da via expressa, que cortará o lado da ilha ainda coberto por Mata Atlântica, manguezais, áreas alagadas e refúgios de vida silvestre.



“A gente tira o sustento do mar porque existe essa mata, esses rios, que estão interligados ao nosso manguezal. É uma tragédia uma estrada com veículos pesados no meio disso”, diz Rafael Carvalho, 37, indígena da etnia tupinambá, cineasta, pescador e presidente da Associação de Moradores, Pescadores e Marisqueiras de Itaparica. “É aqui que estão os estuários e os espaços ancestrais sagrados”.
Compartilhando da mesma preocupação, a comerciante e marisqueira Rita de Cássia dos Santos, 50, criada pela mãe “dentro do mangue”, lembra que “saía carregada de ostras”. Hoje, com o avanço da urbanização, diz que já é mais difícil encontrá-las. “Se mexerem aí, acabou”, alerta a moradora da ilha.
Isaías Conceição, 43, ex-pescador e hoje dono de um bar na orla de Baiacu, onde se concentra grande parte da atividade pesqueira da ilha, responsável por abastecer Salvador e outras cidades, acrescenta: “Tudo aqui é berçário. Todo mundo sabe que nossas nascentes estão desse lado [da contracosta]”.
A Licença Prévia para a construção da ponte, concedida em 2016 e renovada em 2022, baseia-se no Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), documento obrigatório no licenciamento de empreendimentos. Ele foi elaborado com dados coletados entre 2013 e 2014 e já indicava impactos sobre o território da ilha e a baía, incluindo danos a áreas protegidas como o Parque Ecológico do Baiacu e a Reserva Ecológica da Ilha de Itaparica.

Em parecer concluído em outubro de 2024, o MPBA alertou para falhas no EIA/Rima, como a falta de clareza sobre a obra, que pode resultar em impactos socioambientais não previstos ou mal avaliados. Além disso, como a construção ainda não começou de fato e deve durar seis anos, os dados usados no estudo estarão defasados em pelo menos 16 anos quando a ponte for concluída.
“Já solicitamos dados atualizados e o projeto executivo muitas vezes, mas não temos resposta”, disse ao Dialogue Earth a promotora do MPBA, Cristina Seixas, que acompanha o projeto há mais de uma década. “Fico muito preocupada, porque agora estão buscando a Licença de Implantação, mas, do jeito que está, não tem como esse projeto avançar”.
“Não é só uma ponte, é um sistema que afeta Salvador, a ilha e dezenas de cidades”, completa Seixas.
A CPSI afirmou que foram feitas análises complementares ao EIA/Rima, incluindo inventário florestal, consultas a comunidades e avaliação de áreas de conservação. Segundo a concessionária, os estudos foram validados por autoridades e embasam o Plano Básico Ambiental, outro documento obrigatório no licenciamento, que serve para detalhar as medidas de mitigação e compensação dos impactos.

A reportagem solicitou acesso ao Plano Básico Ambiental, mas não obteve retorno. Já a promotora Seixas reitera que os dados disponíveis seguem desatualizados.
Ao Dialogue Earth, o secretário estadual da Casa Civil, Afonso Florence, que acompanha o projeto pelo governo, reconheceu que os estudos de impacto e as propostas de mitigação precisam ser atualizados. Ele também não descarta mudanças no traçado da Variante.
“Vamos retomar as análises de todas as considerações, sejam das comunidades ou do Ministério Público, aperfeiçoar as condicionantes e o plano de mitigação para tornar o projeto melhor, mais robusto e mais sustentável”, diz Florence.
Falta de consulta prévia
Embora a concessionária afirme que a consulta às comunidades tenha sido realizada, os encontros só começaram de fato no dia 16 de junho. Até então, lideranças locais apontavam o descumprimento do que determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário e que garante às populações tradicionais o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada sobre qualquer iniciativa que afete seus territórios e modos de vida.
Essa consulta diz respeito ao direito das pessoas de dar ou negar consentimento a projetos que possam afetá-las. Seu foco original são os povos indígenas, mas também é considerado uma boa prática para todas as comunidades locais. Ela aparece na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, na Convenção sobre Diversidade Biológica e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Mas, após a realização de dois encontros, o processo já enfrenta críticas. “Estão chamando isso de Consulta Prévia, mas a consulta precisa ser livre e informada e respeitar o cronograma das comunidades. Estão vindo no território, pegando algumas pessoas e levando para locais privados. Não tem divulgação e não temos acesso ao cronograma. A gente não aceita essa forma de consulta”, diz Carvalho.
Em março, o governo estadual publicou uma portaria com diretrizes para a consulta, prevendo duração de 60 dias a partir da primeira audiência pública.
Parece que a ilha é só um atalho entre Salvador e o interior, mas os impactados somos nósMoisés dos Palmares, candomblecista no Terreiro do Silêncio
O Quilombo do Tereré é uma das comunidades de cultura e religiões de matriz africana da Ilha de Itaparica ameaçadas por remoções, violação de lugares sagrados, demolições e/ou degradação ambiental, de acordo com um estudo sobre os impactos da obra encomendado pelo próprio governo e acessado pelo site jornalístico Intercept.
Nativo da ilha, Moisés dos Palmares é iniciado no candomblé no Terreiro do Silêncio, um espaço religioso dentro desse quilombo, e questiona o prazo da portaria: “Na ilha, há centenas de comunidades tradicionais. Em 60 dias esse processo vai ser concluído?”
Segundo ele, os serviços básicos na ilha “já são péssimos”. “No verão, ficar sem água e luz é rotina. Não temos saneamento básico. Com a ponte, a ilha vai virar mais um bairro de Salvador, mas cadê a estrutura?”, indaga Palmares. “Parece que a ilha é só um atalho entre Salvador e o interior, mas os impactados somos nós”.
Sem mencionar prazo, o secretário Afonso Florence afirmou que há diálogo com os ministérios públicos estadual e federal para firmar um Termo de Ajustamento de Conduta visando superar pendências como finalização da consulta prévia e de estudos adicionais sobre os impactos. Segundo ele, as consultas serão realizadas cumprindo a Convenção 169.
Impactos também em Salvador
Para o arquiteto e urbanista Paulo Ormindo, professor titular aposentado da Universidade Federal da Bahia que acompanha o assunto, um dos impactos menos debatidos é a mobilidade em Salvador — cidade de 2,4 milhões de habitantes com sérios problemas de tráfego e acesso ao transporte público. Segundo ele, a capital não está preparada para absorver o aumento do fluxo de veículos com a ponte, com risco de um “colapso viário”.
Ormindo alerta ainda que a ponte vai expandir o eixo metropolitano de Salvador, mas que a cidade não tem estrutura para atender ao possível aumento de demanda por serviços. “Itaparica vai virar uma extensão urbana de Salvador, além das outras cidades que estarão mais próximas, e o impacto disso não está planejado”, diz.

Ormindo defende, em vez disso, a implantação de um sistema rodoviário-ferroviário ao redor da baía. Esse traçado contornaria a ilha, se conectaria à malha viária após a Ponte do Funil e permitiria o transporte de cargas por trem.
A CPSI argumentou ao Dialogue Earth que o projeto trará incremento à economia de mais de 250 municípios baianos, beneficiando mais de 70% da população do estado. “Trata-se de um projeto que irá aperfeiçoar a logística, facilitando o transporte de cargas e pessoas, reduzindo custos e diminuindo o tempo de deslocamento, aumentando a competitividade com a criação de novos corredores logísticos”, afirmou a concessionária.
Embora a travessia da Baía de Todos os Santos seja reconhecida como um gargalo para a economia da Bahia por moradores e governo, as comunidades defendem que a superação deste obstáculo não ignore quem vive na região.
“A gente precisa ter futuro, mas estamos sendo expulsos do nosso próprio território. A ponte pode até passar, mas nós vamos resistir”, conclui o tupinambá Rafael Carvalho.